Eduardo Guimarães

quinta-feira, março 16, 2006

A Carne


João atravessou o hall a passos leves, sem se importar com os objetos jacentes ao chão, quase a lhe fazer perder o equilíbrio. Abriu a gaveta de cima do criado-mudo e retirou o maço de charutos, o qual lhe fora dado como presente de aniversário por seu amigo Antonioni. Cheirou o maço antes de abri-lo, verificando novamente a bela caixa de madeira. Era um daqueles de Havana, legítimo, cujo odor emitido o embalava, levava-o aos confins de uma plantação distante, onde tudo ao redor era verde. Oh, que calmaria! Retirou um dos charutos, pô-lo ao canto da boca e acendeu o último que restava. Guardou a caixa como lembrança, pois afinal ela era muito bem trabalhada, a ostentar uma cubana que trajava uma roupa indígena, e uma fita vermelha amarrada aos lisos cabelos. Ao fundo, via-se uma casa com um moinho, e uma vasta plantação a tudo tomando.
Baforou próximo ao piano. Que aroma! – pensava. Não resistiu e tocou um trecho de uma das obras de Villa-Lobos, a qual lhe fora ensinada pela esposa, logo após a compra do velho piano perante um desses antiquários. Dizia ele ter pertencido a uma nobre família polonesa, por causa da marca impressa perto de uma das teclas – “Smorvlek”. Se você for pesquisar bem, utilizando-se dos devidos materiais, verá que a família Smorvlek era uma das mais tradicionais ao tempo da industrialização polonesa, a conquistar o mercado dos sonhos... Oh, anfitriões, cá estamos, olá! E, assim, debruçou-se ao piano de teclas de marfim, feito de uma madeira escura, a qual lembrava mais a terra roxeada dos campos russos. Aquele grande instrumento, ainda afinado, lembrava-lhe a lua-de-mel, tão intensamente vivida por ele e a esposa... "Oh, Paris dos meus sonhos, haverás de tragar-me por uma segunda vez, como os teus vinhos fazem aos lábios novatos, ou a tua arte aos olhos nunca dantes abertos! Mon Dieu, voilá"!
Terminou a melodia e surgiu-lhe a mulher, que terminava o banho naquele instante. Trajava o roupão da corte, o qual delineava-lhe o corpo esguio, uma linda serpente em fuga, deixando rastros sinuosos por onde passava, numa atraente e bravia passada... E que lindas madeixas ostentava, tão brilhantes como um luar das ilhas caribenhas. E os lábios? Eram mais duas cerejas suculentas, vívidas e macias, cujo toque estonteante haveria de deixar qualquer homem em estado de freqüente necessidade. A pele, alva como a própria neve do inverno italiano. E ela chegou por trás, furtivamente, e passou-lhe a língua na nuca, num gesto instintivo, pedindo algo ao seu marido, e ele entendeu o recado. Despiu-na vorazmente, sugou-lhe todas as partes do corpo e atirou-a na cama, e juntos reviveram a avidez da continuidade, da volúpia insensata, dos frenéticos sons do instinto ímprobo e tentador. Após algum tempo ela adormeceu, num sono retido e abismal. Seu peito arfava levemente, uma das mãos pendidas sobre o coração, a outra a tocar o corpo do marido, o qual pensava que aquele ser, ali, ao seu lado, tão gracioso e vulnerável, pertencia-lhe... Nenhum outro homem sentia o toque profundo daqueles lábios inimagináveis. E, assim pensando, quase num sonífero deleite, a campainha do quarto do hotel tocou. Deveriam ser os amigos, os quais foram chamados pelo casal para um jantar, pois que nunca mais haviam se visto. Aproveitaram o momento de passagem pela cidade dos mesmos, quando em férias, ali. E o esposo despertou do seu momento lacônico. Levantou-se, vestiu a roupa e foi atender à chamada.
Os rostos sorridentes apareceram. O casal Nogueira novamente ali estava, e quantas recordações... O rosto quadrado do Miguel, oh, o Miguel, o Miguelão, das “garrafadas” em noites libidinosas quando na república da faculdade. Via-se que havia engordado ainda mais. Portava ele um terno cor-de-salmão, e um cravo à lapela chamava bastante a atenção de quem não via apenas aquele face lustrosa, vermelha e inchada, como que saída de uma passagem pela casa de Baco. E, ao seu lado, Ruth, a esposa do Miguelão, com o seu sinal tão característico próximo ao olho esquerdo, o cabelo tão liso e negro, cortado agora curto, fazia recordar a época das bossas-novas cariocas. Ainda não perdera a mania de trazer os lábios finíssimos ao canto do rosto, em ar de “não-me-toque”.
_Oh, mas que não é o Joãozinho, o pequeno João, não mais tão pequeno assim, visto o seu quarto de hotel! Não cresceu no tamanho, mas o fez em matéria, oh, sim, como não? – saudou Miguel ao seu amigo, com fortes tapas nas costas. Ruth, como sempre, permanecia calada, o rosto levemente curvo, e os olhos trabalhando. Dava pra ver as grandes bolas negras girando, a fotografar todo o ambiente. Pararam no traje íntimo de Isa, a mulher de João, sua amiga, a qual, naquele instante, encontrava-se dormitando após um fatídico labor amoroso. João percebeu o erro após uma retorcida brusca dos lábios de Ruth. Oh, perdão, perdão!
O casal visitante sentou-se no sofá de pêlos de arminho europeu, enquanto João ia chamar “sua amada dorminhoca”, assim pelo mesmo designada. Ficaram ali parados, Miguel e Ruth, mirando de uma forma pasma e imbecilizada para toda aquela arrumação. Apesar de o quarto pertencer a um hotel chique da cidade, muitos dos móveis faziam parte do patrimônio do casal de amigos, que os trouxeram para se sentir mais num lar aconchegante, enquanto passavam ali a quinzena das férias. As cristaleiras, o piano, as mesas de madeira européia, a cadeira do Século XVII de João, a adega iluminada e melancólica, detrás de um galpão de mahogany, tudo muito luxuoso e caro. João voltou trazendo consigo Isa, e os dois amigos a saudaram.
Comeram uma bacalhoada com as mais diversas especiarias e, para acompanhar, champanhe do Porto, ó bela Portugal, ainda hei de voltar, explicitou João, num suspiro longo e saudoso, o olhar perdido. Isa punha-se a tagarelar bastante após o almoço, e João não ficava atrás. Miguel repetiu quatro vezes e sentiu-se enfastiado. Começou a reprimir os gases que teimavam em escapulir da sua boca carnuda e extravagante. Ruth conservou-se quieta, o olhar longe, nunca se sabia onde ela estava exatamente. Assim transcorreram duas horas, quando se dirigiram para o grande sofá da sala do apartamento. Ruth e Miguel serviram-se do central, de dois lugares. Quanto a Isa e João, utilizaram-se das duas poltronas feitas do mesmo material de arminho, numa posição um tanto distanciada entre eles dois. Mas assim, mantinha-se o equilíbrio. Ruth pediu licença para ir à cozinha. Passados alguns segundos, João retirou-se para pegar alguns cálices. Retornaram junto.
O cinzeiro cobriu-se de cinzas. Os uísques escoceses foram servidos e, após a quarta dose, a conversa fluía, até mesmo para Ruth. As faces avermelhavam-se, os olhos mareavam, as bocas não fechavam e o ambiente tornou-se único e vibrante. Miguel, já apenas vestindo a blusa clara de baixo, pigarreou forte e escarrou no tapete árabe, lá das bandas de Riad, puríssimo algodão. Uma espuma fervente e mal-cheirosa encontrava-se, agora, no centro do tapete. Por um instante, o silêncio reinou absoluto, utilizando-se de cetro e coroa dourados. Daí que João, um tanto enojado, assistiu à segunda escarrada de Miguel, mais nociva e ácida que a primeira, arremessada com força ao tapete. João, pois, não se conteve:
_Mas que é isso? – vociferou. Não pode ir até o toalete e expurgar todo esse muco de suas vísceras? Há de manchar-me de leveduras ácidas o nosso tapete árabe? Pois, o que é isso, homem?
_Mas que há, que se passa? Não pude me agüentar, oh, Joãozinho, meu amigo. – disse Miguel em resposta, um pouco sem ar, enquanto limpava o que sobrou do serviço num guardanapo. E, qualquer coisa, esse tapete aí é do hotel, pra que a bronca? Ora, pois, continuemos a noitada, hã?
_Esse tapete é nosso, sua grande bola de gordura! – ralhou Isa, por sua vez, ainda tentando se recompor da visão da cascata purulenta. Pensei que esses anos todos haveriam de mudar a sua estirpe, mas quedei-me enganada! Estás para o chiqueiro, assim como o porco está para as fezes! Arre!
Um clima de objeções tomou conta do ambiente, agora hostil.
_E que me diz? – retrucou Miguel, agora com certa raiva no vozeirão de costume. E não era o seu marido que atirava baratas esmagadas por seus próprios dedos nos copos dos colegas de quarto, enquanto ele ria escondido a um canto, apenas para ver a imundície? Ora, sua grande cretina, não me alteie a voz que hoje tive um dia cheio...
_Cheio como o seu estômago, verme asqueroso? – levantou-se João, de súbito. Fiz isso, é verdade, mas mudei. Aquilo é tempo muito passado, apenas lembranças de uma república miserável, repleta de ordinários metidos a ricos, como você, com os quais eu tinha que me misturar para não passar por mal perante os professores. Ora, mas o que quer? Não era o famoso imundo, em dias sem banho, daquele tempo? E não estocava os sabonetes dos outros no próprio ânus e daquela forma os devolvia? E não vomitava em toda festa que se fazia presente, apenas para presenciar o rosto dos que lhe observavam? E não tinha a mania de urinar no próprio quarto, para que o odor fosse sentido pelos colegas? E, nestes quatro anos que se passaram, vejo que ainda não se encontra em meio a gente, grande mal-do-século... vem-me aqui, aproveitando-se da hospitalidade de um dito confrade, e escarra-me o tapete, como um doente asqueroso? Ora, pois vamos ver!
_Retenha essa lábia de moralista cuidadoso, ó tipo embolorado! – foi a vez de Ruth escandalizar, com voz trêmula, as mãos cerradas. Todos sabem que isso aqui tudo não passa de algo ilusório, conseguido à custa da agiotagem e da morte de muitos! Pois que todos daqui comentam ainda a respeito da ladroagem sob quais vestes seu pai sempre se escondeu, mandando matar os endividados, caindo à vileza como uma hiena perante a carne desossada e fétida! Meus pais não sofreram os efeitos dessa nuvem usurpadora? Que me há de dizer? Vou pôr a boca no mundo e fazer com que todos descubram as falcatruas da sua família de falsos higiênicos! Pois que são uns vândalos da pior espécie! E essa piranhazinha aí se ajuntou para o quadro! – disse, apontando para Isa.
_Ora, sua vadia...
_Vadia, não, cobra peçonhenta! Antes viver pobre do que ser comprada por alguns diamantes e algumas vestes nobres de procedência, certamente, ilícita! Quantas prostitutas não desempenhariam um papel melhor? E, decerto, sairiam mais barato aos bolsos do barão!
Um tapa fez a dentadura de Ruth pular à cozinha.
_Meu Deus! Usas dentadura? Mas não me faça rir!
Ruth saltou com duas garrafas em mãos, quebrando-as na cabeça de Isa, a qual caiu em meio a espasmos. Miguel lutava mais adiante com João, e seu peso realmente o ajudava. Suas mãos pesadas agarraram o pescoço do menos corpulento, e dali não desgrudaram até o fim da vida do mesmo. Isa mal conseguia respirar, em sua convulsão intermitente. Ruth diminuiu-lhe o sofrimento, fincando-lhe um pedaço de vidro na jugular. Enfim, o local emudeceu-se. Ouvia-se apenas o arfar dos corpos cansados pelo combate.
_Ao quarto, adiante-se!
Ruth abriu um grande saco, para que Miguel despejasse as jóias, pedras lapidadas, diamantes... os cristais iriam depois. Não poupou sequer a carteira do falecido, a qual continha muitas notas. Ruth despiu o cadáver da esposa, pois gostou bastante daquele vestido francês. Uma boa limpeza no mesmo tiraria as manchas do assassinato. Com as mãos carregadas, dirigiram-se à saída.
_Finalmente, amor! – disse Ruth. Finalmente, sairemos dessa vida que não nos pertence, atearemos fogo naquele barraco imundo, e partiremos daqui! Viveremos muito bem!
_Isso de fato poderia acontecer, Ruth. – respondeu Miguel. Mas você acha que eu não vi quando você e essa carne jacente aí se atracaram na cozinha?
_Que está dizendo, seu louco? Não nos atracamos! De onde tirou isso?
_Eu vi, Ruth. Não minta. Eu vi, sua vagabunda!
Então, trancou Ruth no apartamento. Saiu portando todas as tralhas objeto do furto.
_Quando sair daí, eu estarei longe, e você certamente presa. Acha mesmo que deixaria um cadáver ambulante usufruir da nova vida ao meu lado? – gritou de fora Miguel, antes de tomar o elevador.
Ruth enlouqueceu. Da varanda do oitavo andar viu Miguel ligar o carro deles e partir, sabia-se lá para onde. Para fora da cidade, do Estado. Certamente iria obter nome novo, companheira nova. E ela apodreceria na prisão. Ligou para a recepção, mas o gordo fora mais esperto, cortando os fios do aparelho, sem que ela tivesse notado. Num ato de desespero, prostrou-se do lado exterior da varanda e tentou descer até o apartamento de baixo, mas a distância entre uma varanda e outra era bem considerável. Perdeu o equilíbrio e mergulhou. Gritou pelo companheiro, mas o mesmo não lha podia ouvir. Estaria em qual prostíbulo? Onde seria a nova casa, o novo...O pensamento foi cortado pelo impacto. A carne foi ferida, mais uma vez.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Du, o q vc tah fazendo aqui nesse buraco ainda? Se eu tivesse o dom das palavras como vc o tem jah teria dado um rumo bem diferente em minha vida. Falo sério! Tem q divulgar esse blog, dar um jeito de publicar, sei lá! Mas nao dá pra desperdiçar seu talento mais nao! Amei "a carne". :D

1:53 AM, março 18, 2006  

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