Eduardo Guimarães

quinta-feira, março 16, 2006

Tecnoclaustrofobia


Flavinho acordou para mais um dia cheio de aventuras. Com certeza o seria, pois se preparava para o primeiro dia de aula na quinta série. Desceu da cama, ainda esfregando os olhos, sentindo um pouco de frio, pois o dia amanhecera nublado, com um ventinho de arrepiar os pêlos da pele. Como de costume, a primeira coisa que fez foi lavar o rosto para despertar mais rapidamente. A pior hora era a de escovar os dentes, fazia-o com muita sofreguidão. A mochila localizava-se sob a escrivaninha, os livros sempre desarranjados, espalhados desordenadamente. Apesar de novos, sempre matava a curiosidade de folheá-los, sentir aquele cheirinho de livro novo, mirar as figuras e letras, as quais, a cada ano, aumentavam de quantidade e complexidade.
Pôs os necessários na mochila e desceu, já trajando o uniforme escolar. A moça que realizava os serviços domésticos serviu o café matinal, e sentaram-se à mesa o garoto e sua mãe, cujos cabelos encontravam-se novamente amarrados daquela maneira, com uma espécie de coque por detrás, puxados na frente, deixando transparecer a testa. A blusa e a saia impecáveis, a maquilagem a mais perfeita, sem dúvida era uma mulher bonita. Não se falaram durante o café, tendo em vista as inúmeras chamadas ao celular da mãe, requisitada pelos serviços indispensáveis à empresa.
_Mas é claro que sim. Como não? E os formulários de venda? A consultoria atuou com sucesso? Conte-me como foi ontem. Estarei aí em instantes.
Mais meio minuto e novamente o aparelho tremia sob a mesa, fazendo ecoar um som ensurdecedor pela casa, acutíssimo e efêmero, devido à pressa angustiada da mãe em saciar-lhe os berros, levando-o ao ouvido direito. Flavinho apenas assistia àquela cena corriqueira, e tratava de comer o seu pão integral com queijo branco, regado a suco de laranja “light”. A mãe se levantou de repente, sem concluir a refeição.
_Flávio, – falou em tom sério – não poderei levá-lo à escola hoje, pois tenho um compromisso urgentíssimo. Chamarei um táxi que deixará você lá, certo? Tchau.
Saiu, sem olhar para trás. Os sapatos produzindo um forte ruído na área do elevador. Foi e retornou. Abriu a porta e entrou, pois havia esquecido a bolsa, com os documentos do carro, a carteira e o “lap-top” empresarial. Onde estaria com a cabeça? Bateu a porta, ao sair.
O táxi levou Flavinho à escola, para o seu primeiro dia de aula, na quinta série. Alguns alunos que estudaram com ele na quarta ficaram na sua sala, e o receberam de forma muito amistosa.
_E aí, Flavinho? Como foram as férias? Eu fui com minha família para o litoral. Lá meu pai me comprou esse celular que tira fotos instantâneas. Vem aqui, vamos tirar uma, sorria! – falou, puxando o garoto pra perto. A foto surgiu na tela do celular.
Ao fundo da sala, encontrou seu melhor amigo, o qual portava um joguinho portátil de última geração. Estava tão entretido que não notou sua chegada. Quando finalmente despertou, deparou-se com Flavinho.
_Tudo beleza? Como está? Vem aqui, vamos jogar isso aqui, é muito massa! Aperte aqui e vá pegando a comida, senão você morre. Cuidado, você vai errar! Olhe o obstáculo! Cara, como você é ruim!
O jogo tocou uma música para derrotados. O amigo arrancou-o das mãos de Flavinho e recomeçou a aventura. A cada pontuação obtida, retorcia a língua para um lado e jogava os braços para cima e para baixo, na esperança de o jogo submeter-se àqueles movimentos externos.
O intervalo custou a chegar. Os alunos logo tomaram todo o espaço da cantina. Um garoto, cujas feições não eram nada amigáveis, fez Flavinho cair e derrubar o seu lanche.
_O que é isso, está esbarrando em mim? Quer apanhar?
Flavinho, que estava meio confuso naquele dia, com pensamentos distantes, partiu com tudo pra cima do garoto, que era da sétima série. Os dois rolaram no chão, a socos e pontapés, mas foram logo separados pelo supervisor. Flavinho saiu com arranhões no peito e na barriga. Porém, não sentia ardor algum. O supervisor levou os brigões para a diretoria.
_Tudo bem, dessa vez passa, não vou dar suspensão e nem notificar os seus pais. No entanto, eu aviso: que seja a primeira e única vez. Sejam bons amigos daqui pra frente – disse a diretora, sem quase olhar para os garotos, pois estava com o rosto enfiado no computador, acompanhando uma discussão presente na rede, sobre como melhorar o sistema educacional de uma forma geral.
O transporte escolar devolveu o menino à sua casa. A moça disse que sua mãe não viria almoçar, visto que teria uma reunião importante às quatorze horas, como se podia ouvir na secretária eletrônica. Flavinho almoçou assistindo à TV, na qual passava um noticiário, que tratava sobre um incêndio na Coréia do Sul. Desligou a TV e foi ouvir o CD de rock no “microsistem”, deitado no chão e olhando para a foto de sua mãe dentro de um porta-retrato, localizado sob o criado-mudo. Olhava também para uma foto de Salvador, pregada na parede, lembrança de seu falecido pai, numa de suas muitas viagens pelo país. Morria de vontade de conhecer a Bahia. A empregada doméstica anunciou sua ida, lembrando que o jantar já estava pronto, só precisava aquecê-lo no microondas. Sua mãe chegou às vinte horas, mostrando uma cara fatigada. Quando ele apareceu na cozinha, ela já estava jantando, e passava continuamente as mãos nos olhos, descendo até a boca. O celular tocou mais duas vezes. Ela comeu o jantar frio, vai ver esqueceu-se de aquecê-lo. Levantou rapidamente e ligou o computador, para acompanhar o resultado da reunião na rede. O celular tocou no quarto mais duas vezes. Flavinho sentou-se na cama da mãe, assistindo ao esforço coordenado e concentrado que esta efetivava perante os aparelhos. Quando ela terminou a segunda ligação, o garoto murmurou:
_Mãe, hoje teve pouca lição, mas é porque foi o primeiro dia. Teve um menino que me empurrou, contudo foi culpa dele, eu só fiz me defender. E também...
_Olha, filhinho, mamãe precisa terminar isso aqui, que é pra amanhã de manhã. Daqui a pouco você me conta, tudo bem?
Flavinho consentiu e dirigiu-se ao seu quarto. Esperou até as vinte e duas horas, mas os olhos o traíram, cerrando-se por completo. Quando acordou, já era mais uma manhã fria e nublada.
Algum tempo se passou, e Flavinho já se encontrava na oitava série, somando seus quatorze anos de idade, em plena adolescência. Caminhou até a escola, pois a mãe já havia ido trabalhar, e ele não precisava mais de táxi. O primeiro dia foi normal, reviu os velhos amigos de salas passadas. Seu melhor amigo não ficou em sua sala nova. Houve um que lhe mostrou fotos tiradas no Chile, em sua viagem de férias. Percebeu que havia muito mais novatos de cara tímida, como pássaros fora do ninho. Num deles, seus olhos pararam. Durante a realização da chamada, ficou sabendo seu nome: Layla. Durante o intervalo, obteve coragem e sentou-se próximo a ela. Notou que havia escolhido as mesmas coisas que ela, um suco de embalagem e um sanduíche natural.
_Olha só, temos o mesmo gosto – disse, mediante uma voz trêmula e engasgada.
_É mesmo – respondeu a garota, secamente.
_De onde você vem? De outro colégio daqui mesmo, ou de outra cidade? – insistiu, para quebrar o gelo inicial.
_Vim de um pouco longe, de Salvador. Meu pai foi transferido e vim pra cá com ele, porque ganhou minha guarda.
_Vem de Salvador? É mesmo? Que legal, queria tanto conhecer lá!
_Lá é bonito mesmo. – e sorriu com um cantinho da boca. _Mas não vou demorar muito tempo por aqui, porque acho que vão transferir meu pai mais para o sul.
_E não quer me levar junto, quando você se mudar?
A garota olhou atônita para o rosto de Flavinho.
Ele retornou para a casa, onde novamente almoçou sozinho. A secretária eletrônica anunciou mais uma reunião da mãe, de caráter emergencial para a empresa. Ela é muito importante lá. Quando chegou, passava das vinte e uma horas. Flavinho já havia jantado e fez companhia para a mãe, enquanto esta comia uma salada trazida da rua, com água para descer melhor. O celular, agora de última geração, distribuído aos mais bem-sucedidos na empresa, tocou apenas uma vez, o que era um recorde. A mãe, vendo que não mais tocava, disparou a sacudir a perna direita, de forma ávida. Engoliu as últimas tiras de alface e deixou a louça sob a pia, para a empregada lavar no dia seguinte. Dirigiu-se ao computador, mas a rede não logrou êxito em conectar, devido a uma queda no sistema de telefonia. Sob aquela intempérie, começou a surrar a mão aberta o computador.
_Essa porcaria, quando a gente mais precisa, ele não funciona! Anda, pega!
E as pancadas aumentaram de potência. Até que Flavinho, de espectador, arriscou uma fala:
_Mãe, até que o meu primeiro dia na escola foi calmo. Pena que meu melhor amigo não ficou na mesma sala que eu. Conheci uma menina chamada Layla, ela é nova na escola e na cidade, e muito legal, mas parece que vai se mudar, porque o pai foi...
_Filho, só um instante, porque eu preciso conectar aqui, senão vou perder o resumo da ata... Preciso saber também qual foi a decisão de uma empresa fornecedora da nossa... Dê-me só um tempinho, vá pro seu quarto, que dou uma passada lá depois que terminar aqui.
Flavinho rumou para o quarto, como de costume. De lá, ouviu o celular da mãe tocar no quarto dela.
_Sim, eu sei, estou tentando, mas é que deu um problema na linha...
No segundo dia de aula do primeiro ano, Flavinho retornou a casa com os olhos formigando e uma paz no espírito. Conheceu Juca e Leco, dois rapazes de classe média alta. Saíram no carro do pai de Juca e só retornaram às dezesseis horas. Cambaleou na cozinha, e precisou sentar-se numa cadeira. Sentiu uma fortíssima dor de cabeça. Foi ao banheiro pegar um analgésico. Mirou-se no espelho, os olhos assustadoramente vermelhos, os cabelos desgrenhados. O telefone tocou. Pensou ser sua mãe. Mas era Juca, convidando-o para mais uma saída. Desceu para esperá-lo.
Na reunião, a mãe recebeu a notícia de que o carro em que seu filho estava chocou-se contra um poste. Flavinho estava no banco da frente, ao lado do motorista, e foi atirado violentamente para fora do veículo. Juca encontrava-se no hospital, em coma e com traumatismo craniano. No carro, vestígios de um pó branco anunciaram o acontecido. A mãe pôs as mãos nos olhos e foi descendo até a boca, soluçando, as lágrimas pendendo de seus olhos cansados. O seu chefe, um dos diretores da empresa, deu-lhe a semana de folga como um gesto de comiseração, até porque era um homem de escrúpulos e boa índole, além de bem-sucedido na vida, tal como a mãe de Flavinho. Ela foi guiada para efetivar a confirmação do corpo. Soube-se que era de Flavinho, mesmo. Mais pranto. Layla soube da notícia no sul, quando estava com seu novo namorado, acessando a internet. A mãe de Flavinho, em seu quarto, realizou uma ligação pelo celular, a ligação mais incômoda que já efetivou, mais do que aquelas para conhecer as notícias das empresas fornecedoras, ou aquelas em que se queria saber a respeito dos resultados das reuniões: ligou para encomendar um caixão...