Entrego-me, neste exato instante, às excrescências, às putrefações corruptoras e soberbas da alma, essas vis e difamantes, ceifadoras do vínculo da vontade entre mim e este mundo! Atreve-se a adentrar-me as janelas mais escondidas dos olhos do meu coração, que por um colapso contínuo de forças arteriais ainda se põe pulsante, tendente a um grito de misericórdia no intuito de o seu esforço não ser em vão, no intuito de que o fluxo vermelho-forte, objeto do seu labor insuperável, jamais coagule! Oh, teias da exasperação, cujos laços envolventes grudam, num abraço tempestuoso, a pele do ser em agonia! Onde estarás tu, aracnídeo mal-feitor, que não no centro desta obra amaldiçoada, a perseguir-me até os suspiros finais desta minha existência lúgubre?
E, despojado de quaisquer cerimônias sutis, de quaisquer ações que demonstrem um simples caráter do cotidiano de uma pessoa, eis-me cá, debruçado à janela frontal de um quarto que cheira a um enterro, a uma estonteante revolta ao mais belo dos sentidos olfativos, os quais levantam os punhos frente ao odor vil, à sensação invisível que faz os olhos de qualquer ser experimentado marearem-se, subjugados... E, já quase atirando-me abaixo da sacada, estando eu buscando a fuga àquele odor, através das ventanias vindas do longe, paro diante da minha tês confusa e oblíqua, desarranjada ainda mais pelo espelho antigo e negro o qual descansa a um canto do recinto nauseabundo... Posso ver-lhe as rugas de espelho velho e quebradiço, cujas pernas mal conseguem mais diferenciar o são do embrutecido... Posso ouvir-lhe as piadas que faz das imagens por ele projetadas... "Aqui, o que estou eu a mostrar a vós, algumas cenas incólumes? Errais, biltres! Errais, de maneira grotesca e pueril! Pois que estou a mostrar-vos o peso do tempo atuante sobre vós, as criaturas sem imagens! E as mostro da forma como irradia vossa alma, solene, porém distorcida, plena de indecisões! A verdade de uma visão crua e maltratada de vossas pessoas, assustar-vos-á? Quebrai-me, por conseqüência, quebrai-me em mil pedaços! E me sagrai o dono da verdade, já que, quem o é, sofre pela perseguição animalesca!"
Oh, espelho dos infernos, tua madeira negra, enrijecida e podre, o teu centro vítreo a confundir ainda mais a realidade, mediante imagens turvas e opacas, fazem-me a realidade ainda mais conflituosa! Nâo! Não tenho eu, além do respirável, a perturbação de continuar os meus minutos convivendo com a tua própria existância! A passos largos, adianto-me à tua frente e, aos golpes de mãos arredias, quebro-te em mil pedaços, como ordenaste a quaisquer criaturas com tamanha coragem! Oh, que linda visão, teu corpo partindo-se como a uma árvore, quando tocada pelos raios dos céus! Geme, agora, infame! Vê o que faço com teus vidros porcalhões! Atiro-os janela afora... Poderão eles ainda projetar uma imagem de vultoso tamanho? Ah! Não mais!
Os pedaços de vidro atirados fazem brilhar a luz do luar cristalino, e ocupo-me em observar intensos e pequeninos cristais de prata, descendo ao léu, descrevendo uma via retilínea, perdidos como os capitães, os últimos homens a abandonar o navio que queima em desespero. Adeus, imagens!
O vento cortante principia-se... As cortinas que privavam a noite de sua beleza obscura abrem-se, por completo. As estrelas conservam-se apagadas, como que, assim como eu, observando o fundo negro de todo o redor. Vós, brilhareis hoje? Qual a vossa resposta, ínfimos pontos de luz? Mostrai-me as tuas cinco arestas de puro fulgor argênteo, tenho delas saudades!
A resposta vem-me sob a forma de um sussurro eólico, e nada mais surge. Onde está a cidade? Escondida sob aquele vulto? Mas, que importa ela... Uma vez que me deparo, neste instante, com as minhas mãos pálidas e sem vida, cobertas parcialmente pelo casaco preto que uso, apoiadas à estrutura da varanda, num laço de generosidade para com o cimento duro e frio... Atrevo-me a dobrar uma parte do casaco, a fim de deixá-las totalmente à mostra, contrastando aquele branco nauseante ao negro encorpado do ambiente. Pandora, faze as vezes, abre a tua caixa! Que fazeis vós, cá, mãos? Qual a função de vós, grudadas em mim? Uma mão direita que leva a colher até a minha boca, para não me deixar cair de fome, enquanto o conteúdo do prato vai se diminuindo, até extinguir-se de vez? Uma mão direita que faz tocar uma singela pena, e concede-me o dom da escrita, este que, a mim, foi tão necessário outrora? Uma mão direita que apertava a mão de pessoas valoradas pela sociedade, por seus feitos bravios, ou pelo simples ato de conseguir passar pelas etapas mais amargas de suas vidas? Uma mão esquerda que permitiu o meu apoio à parede, no momento em que meu corpo vacilou e terminaria ele rolando pelas escadas do castelo? Uma mão esquerda que ajuda a direita com o seu cetro? As mãos que uniram-se à boca para aumentar o som provocado pelo grito audaz, pelo grito de quem chamou a atenção de um ser a caminhar ao longe, colhendo os seus frutos, talvez? Colhendo os seus frutos, ou talvez as suas raízes... As mãos que, junto com os braços, que formam os seus caules, encolheram-se para proteger o resto do meu corpo às investidas de um pobre sujeito cuja existência havia perdido o sentido? Oh, mãos, estes são os únicos feitos heróicos dos quais sois capazes? Mostrai-me algo mais, isto não é o vosso ultimato, não podeis parar por aqui! Resvalai-me por dentre as águas dos rios infinitos, a banhar o cume da montanha, por que não? Subis, com vossa agilidade, até a boca do vulcão e, com vossa maestria, combateis as lavas pelo cone de fogo vomitadas! Impacientai-vos com a sujeira de tais atos vos proporcionaria? Sujeira esta que poderia encrostar-se em vossas unhas? Estou farto dos teus serviços prestados, mão esquerda! Queres tu um banho, uma maneira de limpeza gentil e singela? Pois então, saiamos da dita varanda, ultrapassemos alguns aposentos do castelo e, cá, encontramo-nos à copa imunda! Mão direita, obedece-me uma vez mais! Segura aquele pedaço de metal translúcido e efetua-me mais um serviço! Oh, e eis que a mão esquerda é atirada para fora do corpo! O que é isso, que dor é essa, o caule está a reclamar da perda de sua companheira mental! Perdeste o sentido da existência, tu que eras apenas um sustentáculo à pétala-mór? E a seiva cor-de-rubi é expelida! Soltem-se os metais! Ah, o bom e velho grito, o som seco, gutural, saído dos confins da força própria, amontoa-se ele no ambiente! Vibreis, corpos todos! Sintais esta espuma rubra que lhes toca a pele! Oh, embalos da pura espuma, a amedrontar os globos oculares das nefastas, porém viris, criaturas, a bailar junto com cena, alvejando, urrando, tornando-se majestades! Onde pus a coroa e o cetro?
Desço estas escadas, construídas de uma forma bastante peculiar, a permitir apenas uma pessoa por vez a pisar em seus degraus dúbios e medonhos. Vós não me fareis cair neste instante em que a espuma consente em segregar-se do anfitrião! Não ainda, possessos! Esconjuro-vos, abjetos torpes! Oh, os portões do castelo! Abri-vos, que uma pessoa quer sair através de vós! Desse jeito, escancarar-vos-ão!
E a densa floresta? Como passar através desta escuridão, cujo manto despido de piedade faz-me ferir perante os galhos ainda mais negros e curvos, lacerando-me a carne? Oh, gratidão espúria, que os corvos façam de vós a morada dos deuses! Já me ponho a avistar o pequeno casebre, a lançar a fumaça cinzenta da madeira seca queimada, cujo calor creio esteja aquecendo ao teu corpo perdido na noite gélida. Correis, pernas, correis furiosamente, é apenas mais este pedido que vos faço, nessa ímpar rota ao objetivo! Estaco-me, doravente, de frente a uma das janelas do pequeno casebre... No interior, uma imagem a denotar a existência de um ser diferenciado... Sim, decerto, ponho-me a conseguir! A minha mão restante falta derrubar a porta. O ser do interior do casebre assusta-se com o barulho repentino, a adentrar-lhe o próprio interior, atacando as muralhas da noite silenciosa e sem estrelas. O ser levanta-se e abre a porta, após certificar-se de que não se trata de qualquer agressor estranho, ou guardas sedentos. Ao mostrar-se, ainda vejo o clarão dos olhos daquele ser, um clarão verde e com vida, mas um tanto opaco, desperdiçado. A visão faz com que ganhem brilho novo, mareando-se por completo, a transformar o opaco em lente límpida.
"Estava eu à procura de novas funções para estas minhas mãos, que não fossem o objeto do escárnio de minh'alma, povoado de sensações mundanas! Olha, pois prestei uma vantagem à senhoria esquerda, que, porventura, esteja, nessa hora, saboreando a liberdade plena! Anda, mão esquerda, vai à tua família! A direita desempenharia melhor papel, mas não tive como arrancá-la à liberdade! Por que o fiz? Porque elas estavam revoltas, habituaram-se ao novo e, ao perdê-lo, sentiram-se maltrapilhas e despojada do dom de tempos diferenciados! Deixaste-me tu, oh alvo ser... E as mãos acostumaram-se a enxugar as tuas lágrimas, quando estavas tu esmorecida, a um canto; afeiçoaram-se ao calor da tua pele, minutos infinitos e jocosos, jactantes, repletos de esmero!; habituaram-se a afagar os teus cabelos trançados, a tocar-lhe a face como o faria a singeleza de uma brisa de verão, a tocar-te os ombros e te fazer deitar, entregue ao tato de ambas... E, ao saberem da condição da volta aos momentos únicos e vívidos, propuseram-se ao alcance da liberdade, contrário ao sentido do novo renegado! Entretanto, a direita clama, neste instante, por um último toque, por uma última... sensação!"
Através dos meus olhos ébrios e ambíguos, vi a mão direita, como uma pétala ao início da primavera, espichar-se, como pedindo ao primeiro inseto que a polinizasse com as mais belas dádivas ofertadas pela Natureza. Após um último esforço, numa tentativa de puro desespero aterrador, as pétalas tocaram o chão de neve alva, lá se afundando para nunca mais sair. E uma gota do orvalho dos olhos do ser, ali parado, atingiu em cheio a pétala, que naufragou satisfeita em meio à espuma branca da neve e ao caos do fluxo ruborizado.