Eduardo Guimarães

quinta-feira, março 16, 2006

A reeducação de medidas. O sistema de cotas.


Um pré-desenvolvimento sustentável alicerçaria uma base mais concreta com relação às super-estruturações sócio-políticas. O que se poderia depreender, pois, da não-escassez dos recursos vinculados, das verbas procedentes de diversos setores, da conjuntura ministerial, pois cá no Brasil possuem os Ministros muitas peculiaridades e, conseqüentemente, poder de fazer entoar o verbo imperativo.
Quem, pois, deve obter os louros vitoriosos de uma campanha realmente bem-sucedida, no tocante à tentativa de expurgar o abstracionismo presente na Carta Política de 1988? Prevêem sempre uma ação conjunta da sociedade com o Estado, no intuito de fazer valer os preceitos atinentes a uma educação de primeira classe, como se pode vislumbrar lá pelas bandas dos arts. 206 e ss. da CF. Ora, a sociedade, nessa escalada de "assuntos negociáveis" do presente século, faz retumbar o brado da justiça definido milenarmente, o "dar a cada um o que é seu" (conceito, hodienamente, um tanto retrógrado), uma vez que, com as inter-relações desenvolvidas, numa comunidade de massa, os prodígios coletivos tornam-se mais escassos, tendo em vista que cada indivíduo vai em busca do que é seu e nada mais. Outrossim, a motivação encontrada revela mais uma política de relações públicas como alavanca de uma auto-promoção do que uma rede intrínseca de ações voltadas para a Solidariedade (esta, uma das facetas previstas no âmbito da Declaração Francesa, a tríade revolucionária). Ou, caso se prefira, encontram-se programas de busca a quaisquer erradicações de escória social. Eis um ponto relevante de que a Nação dispõe, ao menos isso. Tendo em vista a extensão territorial e a conjuntura populacional, bem como o calor humano do povo deste país (isso, nenhum estrangeiro pode negar), pode-se conceber centenas de instituições destinadas ao atendimento de pessoas sem perspectivas... em matéria de mutualismo, o Brasil não pode se queixar. No entanto, tal mutualismo é desempenhado, em muitos casos, por iniciativa de particulares. Os Municípios, na maioria dos casos, também oferecem algumas opções acolhedoras. De simples habitações até a busca pela melhoria de condições; isto, claro, sob o bojo das normações federais.
De acordo com a Carta Política, esta explicita bem as intenções humanitárias mostradas às escâncaras há algum tempo. Há, pois, os direitos propriamente ditos - idéia de liberdade (como, por exemplo, a impetração de um simples Habeas Corpus); as garantias sociais - idéia de igualdade (tal como o direito ao trabalho, à educação, à moradia, a um salário condizente com um vivenciar satisfatório, etc.); e, finalmente, a idéia de solidariedade (ou fraternidade, como o queiram os mais saudosos), estampada, principalmente, nos direitos difusos. Eis, pois, a tríade do Homem e do Cidadão abarcada em nossa Carta.
Para se chegar à discussão concernente ao estabelecimento de cotas, há de se passar por inúmeros fatores. No entanto, antes é necessário comparar. Revisite-se o quadro de outras populações, para melhor rever o erro da sua própria. Já dizia Sun-Tzu, noutras palavras: comparar é uma boa forma de ver o quanto se evolui. Ou mesmo, pode-se abraçar o instituto do Direito Internacional Público... para quê existiria o mesmo, senão pela interligação das Nações no quadro atual? Um exemplo clássico é o Da Coréia do Sul. Um país arrasado pela guerra com a vizinha, até uns dias desses. E, caso algum ocidental prefira ela, não como exemplo, mas algo a ser comparado, verá o quão evoluiu aquela ilha. O país prima pela educação, não apenas de base, mas também pela manutenção do padrão viável durante o crescimento do indivíduo. Há um direcionamento para a integração da cultura, a forte valorização dos profissionais do ensino (não apenas universitário, como também o fundamental) e a transformação da instituição de ensino no lar primário, com a oferta de vários expoentes atrativos para o aluno, tudo isso gratuitamente. E bilhões de dólares são gastos para a manutenção desse padrão. Outrossim, com essa ideologia comportamental, tal base é passada naturalmente às diversas instituições sociais (como diria Émily Durkheim), afetando, também, a família (esse "afetar" encarado como algo positivo). Ou seja, têm-se pais preocupados com o investimento futuro da prole, tanto que a porcentagem maior do orçamento é destinado à compra de livros, à especialização, à efetivação de cursos... Ora, a finalidade com que se expõe isso não é a adequação dos governos a esse tipo de medida, até porque todo sistema possui seus pontos vulneráveis. Entretanto, compare-se a medida sócio-educativa e descubra-se os seus efeitos promissores. Afinal, a educação nos difere dos animais brutos. De resto, sobra instinto. Utilize-se, pois, a razão!
Insistindo no assunto, seria possível pensar em adotar a educação no Brasil como fator primário de preocupações? Um ciclo a longo prazo de ideais a serem postos à mesa, a congruência da miscigenação état-loi-monde, uma busca reiterada ao implemento de programas de erradicação? A população é de mais de 180.000.000; retire-se de tal montante as pessoas que não contribuem, as necessitadas; tenha-se em mente a receita proveniente dos impostos (destaque-se, este é o país dos impostos!); as exportações e mais e mais fatores. Diminua-se pelas despesas: convênios de saúde, previdência, instituições de ensino gratuitas, repasse de funcionários ou servidores, o bolinho de notas da corrupção, e mais alguns fatores... Seria possível, com essa política de investimentos? Não adentremos mais, pois este não é o objetivo.
Façamos alusão ao título. Iniciemo-lo pela origem, pela raiz. Toda criança sabe que somos proveniente da cultura de exploração... Lá pelos tempos do Século XVI. Muito, mas muito antes disso, a Grécia já se utilizava de escravos provenientes da África... Cartago, uma das colônias tomadas (guerra contra o Gen. Aníbal), foi uma das que mais se utilizaram do trabalho penoso daquelas pessoas, até mesmo devido à sua localização geográfica. E, a partir da chegada dos belíssimos portugueses, povo que achava que o metalismo ia predominar para sempre, aqui no território brasileiro, todos também já sabem acerca das "implementações" por eles efetivadas, tais como o regime de sesmarias, os navios negreiros (oh, Castro Alves!), os ciclos da cana, do ouro e tudo mais. Pulemos à abolição da escravatura, que, na época, não sei o que aboliu.
Várias cartas concernentes aos direitos do cidadão foram postas à mesa... os governos passaram a disseminar o princípio da igualdade perante os povos... e a sociedade evoluiu, de certa maneira. Mas não o sentimentalismo de algumas pessoas. E eis os dias de hoje. E eis, outrossim, que o governo brasileiro determinou o sistema de cotas para pessoas de afro-descendência. E eis, finalmente, a vasta discussão dos que o defendem e dos que não.
O sinal das perspectivas. Dados geográficos e estatísticos apontam que pessoas de origem afro estão abaixo da média, no tocante à falta de recursos em aspecto lato. Menos condições de educação, de moradia, de sustento, resumindo, menos condições de vida. Tudo bem. Assim, o governo visa ao alcance de uma tentativa de minimização desses problemas, estabelecendo as cotas, pois proporciona a certeza da inserção dessas pessoas no programa educacional do país. Nada mais certo, não? Uma pessoa faz 80% da prova, indo muito bem, mas não ingressa na faculdade por causa da cota. O direito que seria adquirido não o é mais, e de forma lícita. Mas isso não é tão expoente.
A Carta Magna, em seu art. 5º, prevê a igualdade entre as pessoas, sem distinção de raça, sexo, etc. Discutiu-se se o sistema de cotas fere este princípio. Alguns comentaram acerca da possibilidade de sua aplicação sem o ferir, uma vez que está em jogo o interesse público da extinção conjuntural das precárias condições de vida das pessoas afro-descendentes. É a supremacia do interesse público. Um ponto válido. Porém, digamos que uma pessoa branca e uma negra, possuidoras das mesmas dificuldades, estudem toda a sua vida em instituições públicas. A pessoa de pele negra usufruirá dos benefícios da cota, aumentando as suas chances de ingresso, enquanto a pessoa de pele branca será candidata "normal", o que torna suas chances mais remotas... até porque nenhuma delas teria condições de arcar com os dispêndios de uma faculdade particular. Fica a dúvida... qual a melhor solução?
Um segundo ponto. A pessoa de pele negra é beneficiada pela cota. Ocorre o seu advento na faculdade. Será que ela estaria mesmo preparada para o ingresso? Junte-se aí a passagem pela sua vida no ensino público (de qualidade muitas vezes duvidosa, visto que o governo não disponibiliza a valoração devida aos profissionais de ensino, bem como a sua tecnicalização) ao sistema de cotas, o que permitiu ao candidato retro indicado que ingressasse de maneira menos conturbada. Será que essa pessoa não enfrentaria problemas referentes a entender o que se passa no âmbito no ensino superior?
Para concluir, não se deve atirar pedras no governo pelo sistema adotado... ele teve até uma boa intenção, visando à minimização dos dados relevantes. No entanto, essa não será a solução para a concretização do Princípio da Igualdade. Foi dito no início algo concernente à possibilidade de o Brasil ajustar-se aos programas de estruturação desenvolvidos, algo como comparação, e não como algo a se aderir. Deixe-se de lado, pois, a simples comparação e passe-se à praticidade. O que se deve ter em vista, num plano primário, é a política de desenvolvimentos. Esta, aplicável a todas as camadas sociais. Os programas existem, decerto, mas apenas eles se engajando não obterão um resultado amplo, a longo prazo. Mister a revisão das leis, a operalização dos dados obtidos, a visão ideológica acerca do problema, almejando a uma reeducação sócio-política. E, para tanto, é preciso, de fato, muita força e muita coragem. Os poucos beneficiados pela concentração atual atacariam de forma brusca a nova ideologia. Porém, seria uma necessária luta a ser travada. Afinal, os recursos existem para todos, até que se prove o contrário.

A Carne


João atravessou o hall a passos leves, sem se importar com os objetos jacentes ao chão, quase a lhe fazer perder o equilíbrio. Abriu a gaveta de cima do criado-mudo e retirou o maço de charutos, o qual lhe fora dado como presente de aniversário por seu amigo Antonioni. Cheirou o maço antes de abri-lo, verificando novamente a bela caixa de madeira. Era um daqueles de Havana, legítimo, cujo odor emitido o embalava, levava-o aos confins de uma plantação distante, onde tudo ao redor era verde. Oh, que calmaria! Retirou um dos charutos, pô-lo ao canto da boca e acendeu o último que restava. Guardou a caixa como lembrança, pois afinal ela era muito bem trabalhada, a ostentar uma cubana que trajava uma roupa indígena, e uma fita vermelha amarrada aos lisos cabelos. Ao fundo, via-se uma casa com um moinho, e uma vasta plantação a tudo tomando.
Baforou próximo ao piano. Que aroma! – pensava. Não resistiu e tocou um trecho de uma das obras de Villa-Lobos, a qual lhe fora ensinada pela esposa, logo após a compra do velho piano perante um desses antiquários. Dizia ele ter pertencido a uma nobre família polonesa, por causa da marca impressa perto de uma das teclas – “Smorvlek”. Se você for pesquisar bem, utilizando-se dos devidos materiais, verá que a família Smorvlek era uma das mais tradicionais ao tempo da industrialização polonesa, a conquistar o mercado dos sonhos... Oh, anfitriões, cá estamos, olá! E, assim, debruçou-se ao piano de teclas de marfim, feito de uma madeira escura, a qual lembrava mais a terra roxeada dos campos russos. Aquele grande instrumento, ainda afinado, lembrava-lhe a lua-de-mel, tão intensamente vivida por ele e a esposa... "Oh, Paris dos meus sonhos, haverás de tragar-me por uma segunda vez, como os teus vinhos fazem aos lábios novatos, ou a tua arte aos olhos nunca dantes abertos! Mon Dieu, voilá"!
Terminou a melodia e surgiu-lhe a mulher, que terminava o banho naquele instante. Trajava o roupão da corte, o qual delineava-lhe o corpo esguio, uma linda serpente em fuga, deixando rastros sinuosos por onde passava, numa atraente e bravia passada... E que lindas madeixas ostentava, tão brilhantes como um luar das ilhas caribenhas. E os lábios? Eram mais duas cerejas suculentas, vívidas e macias, cujo toque estonteante haveria de deixar qualquer homem em estado de freqüente necessidade. A pele, alva como a própria neve do inverno italiano. E ela chegou por trás, furtivamente, e passou-lhe a língua na nuca, num gesto instintivo, pedindo algo ao seu marido, e ele entendeu o recado. Despiu-na vorazmente, sugou-lhe todas as partes do corpo e atirou-a na cama, e juntos reviveram a avidez da continuidade, da volúpia insensata, dos frenéticos sons do instinto ímprobo e tentador. Após algum tempo ela adormeceu, num sono retido e abismal. Seu peito arfava levemente, uma das mãos pendidas sobre o coração, a outra a tocar o corpo do marido, o qual pensava que aquele ser, ali, ao seu lado, tão gracioso e vulnerável, pertencia-lhe... Nenhum outro homem sentia o toque profundo daqueles lábios inimagináveis. E, assim pensando, quase num sonífero deleite, a campainha do quarto do hotel tocou. Deveriam ser os amigos, os quais foram chamados pelo casal para um jantar, pois que nunca mais haviam se visto. Aproveitaram o momento de passagem pela cidade dos mesmos, quando em férias, ali. E o esposo despertou do seu momento lacônico. Levantou-se, vestiu a roupa e foi atender à chamada.
Os rostos sorridentes apareceram. O casal Nogueira novamente ali estava, e quantas recordações... O rosto quadrado do Miguel, oh, o Miguel, o Miguelão, das “garrafadas” em noites libidinosas quando na república da faculdade. Via-se que havia engordado ainda mais. Portava ele um terno cor-de-salmão, e um cravo à lapela chamava bastante a atenção de quem não via apenas aquele face lustrosa, vermelha e inchada, como que saída de uma passagem pela casa de Baco. E, ao seu lado, Ruth, a esposa do Miguelão, com o seu sinal tão característico próximo ao olho esquerdo, o cabelo tão liso e negro, cortado agora curto, fazia recordar a época das bossas-novas cariocas. Ainda não perdera a mania de trazer os lábios finíssimos ao canto do rosto, em ar de “não-me-toque”.
_Oh, mas que não é o Joãozinho, o pequeno João, não mais tão pequeno assim, visto o seu quarto de hotel! Não cresceu no tamanho, mas o fez em matéria, oh, sim, como não? – saudou Miguel ao seu amigo, com fortes tapas nas costas. Ruth, como sempre, permanecia calada, o rosto levemente curvo, e os olhos trabalhando. Dava pra ver as grandes bolas negras girando, a fotografar todo o ambiente. Pararam no traje íntimo de Isa, a mulher de João, sua amiga, a qual, naquele instante, encontrava-se dormitando após um fatídico labor amoroso. João percebeu o erro após uma retorcida brusca dos lábios de Ruth. Oh, perdão, perdão!
O casal visitante sentou-se no sofá de pêlos de arminho europeu, enquanto João ia chamar “sua amada dorminhoca”, assim pelo mesmo designada. Ficaram ali parados, Miguel e Ruth, mirando de uma forma pasma e imbecilizada para toda aquela arrumação. Apesar de o quarto pertencer a um hotel chique da cidade, muitos dos móveis faziam parte do patrimônio do casal de amigos, que os trouxeram para se sentir mais num lar aconchegante, enquanto passavam ali a quinzena das férias. As cristaleiras, o piano, as mesas de madeira européia, a cadeira do Século XVII de João, a adega iluminada e melancólica, detrás de um galpão de mahogany, tudo muito luxuoso e caro. João voltou trazendo consigo Isa, e os dois amigos a saudaram.
Comeram uma bacalhoada com as mais diversas especiarias e, para acompanhar, champanhe do Porto, ó bela Portugal, ainda hei de voltar, explicitou João, num suspiro longo e saudoso, o olhar perdido. Isa punha-se a tagarelar bastante após o almoço, e João não ficava atrás. Miguel repetiu quatro vezes e sentiu-se enfastiado. Começou a reprimir os gases que teimavam em escapulir da sua boca carnuda e extravagante. Ruth conservou-se quieta, o olhar longe, nunca se sabia onde ela estava exatamente. Assim transcorreram duas horas, quando se dirigiram para o grande sofá da sala do apartamento. Ruth e Miguel serviram-se do central, de dois lugares. Quanto a Isa e João, utilizaram-se das duas poltronas feitas do mesmo material de arminho, numa posição um tanto distanciada entre eles dois. Mas assim, mantinha-se o equilíbrio. Ruth pediu licença para ir à cozinha. Passados alguns segundos, João retirou-se para pegar alguns cálices. Retornaram junto.
O cinzeiro cobriu-se de cinzas. Os uísques escoceses foram servidos e, após a quarta dose, a conversa fluía, até mesmo para Ruth. As faces avermelhavam-se, os olhos mareavam, as bocas não fechavam e o ambiente tornou-se único e vibrante. Miguel, já apenas vestindo a blusa clara de baixo, pigarreou forte e escarrou no tapete árabe, lá das bandas de Riad, puríssimo algodão. Uma espuma fervente e mal-cheirosa encontrava-se, agora, no centro do tapete. Por um instante, o silêncio reinou absoluto, utilizando-se de cetro e coroa dourados. Daí que João, um tanto enojado, assistiu à segunda escarrada de Miguel, mais nociva e ácida que a primeira, arremessada com força ao tapete. João, pois, não se conteve:
_Mas que é isso? – vociferou. Não pode ir até o toalete e expurgar todo esse muco de suas vísceras? Há de manchar-me de leveduras ácidas o nosso tapete árabe? Pois, o que é isso, homem?
_Mas que há, que se passa? Não pude me agüentar, oh, Joãozinho, meu amigo. – disse Miguel em resposta, um pouco sem ar, enquanto limpava o que sobrou do serviço num guardanapo. E, qualquer coisa, esse tapete aí é do hotel, pra que a bronca? Ora, pois, continuemos a noitada, hã?
_Esse tapete é nosso, sua grande bola de gordura! – ralhou Isa, por sua vez, ainda tentando se recompor da visão da cascata purulenta. Pensei que esses anos todos haveriam de mudar a sua estirpe, mas quedei-me enganada! Estás para o chiqueiro, assim como o porco está para as fezes! Arre!
Um clima de objeções tomou conta do ambiente, agora hostil.
_E que me diz? – retrucou Miguel, agora com certa raiva no vozeirão de costume. E não era o seu marido que atirava baratas esmagadas por seus próprios dedos nos copos dos colegas de quarto, enquanto ele ria escondido a um canto, apenas para ver a imundície? Ora, sua grande cretina, não me alteie a voz que hoje tive um dia cheio...
_Cheio como o seu estômago, verme asqueroso? – levantou-se João, de súbito. Fiz isso, é verdade, mas mudei. Aquilo é tempo muito passado, apenas lembranças de uma república miserável, repleta de ordinários metidos a ricos, como você, com os quais eu tinha que me misturar para não passar por mal perante os professores. Ora, mas o que quer? Não era o famoso imundo, em dias sem banho, daquele tempo? E não estocava os sabonetes dos outros no próprio ânus e daquela forma os devolvia? E não vomitava em toda festa que se fazia presente, apenas para presenciar o rosto dos que lhe observavam? E não tinha a mania de urinar no próprio quarto, para que o odor fosse sentido pelos colegas? E, nestes quatro anos que se passaram, vejo que ainda não se encontra em meio a gente, grande mal-do-século... vem-me aqui, aproveitando-se da hospitalidade de um dito confrade, e escarra-me o tapete, como um doente asqueroso? Ora, pois vamos ver!
_Retenha essa lábia de moralista cuidadoso, ó tipo embolorado! – foi a vez de Ruth escandalizar, com voz trêmula, as mãos cerradas. Todos sabem que isso aqui tudo não passa de algo ilusório, conseguido à custa da agiotagem e da morte de muitos! Pois que todos daqui comentam ainda a respeito da ladroagem sob quais vestes seu pai sempre se escondeu, mandando matar os endividados, caindo à vileza como uma hiena perante a carne desossada e fétida! Meus pais não sofreram os efeitos dessa nuvem usurpadora? Que me há de dizer? Vou pôr a boca no mundo e fazer com que todos descubram as falcatruas da sua família de falsos higiênicos! Pois que são uns vândalos da pior espécie! E essa piranhazinha aí se ajuntou para o quadro! – disse, apontando para Isa.
_Ora, sua vadia...
_Vadia, não, cobra peçonhenta! Antes viver pobre do que ser comprada por alguns diamantes e algumas vestes nobres de procedência, certamente, ilícita! Quantas prostitutas não desempenhariam um papel melhor? E, decerto, sairiam mais barato aos bolsos do barão!
Um tapa fez a dentadura de Ruth pular à cozinha.
_Meu Deus! Usas dentadura? Mas não me faça rir!
Ruth saltou com duas garrafas em mãos, quebrando-as na cabeça de Isa, a qual caiu em meio a espasmos. Miguel lutava mais adiante com João, e seu peso realmente o ajudava. Suas mãos pesadas agarraram o pescoço do menos corpulento, e dali não desgrudaram até o fim da vida do mesmo. Isa mal conseguia respirar, em sua convulsão intermitente. Ruth diminuiu-lhe o sofrimento, fincando-lhe um pedaço de vidro na jugular. Enfim, o local emudeceu-se. Ouvia-se apenas o arfar dos corpos cansados pelo combate.
_Ao quarto, adiante-se!
Ruth abriu um grande saco, para que Miguel despejasse as jóias, pedras lapidadas, diamantes... os cristais iriam depois. Não poupou sequer a carteira do falecido, a qual continha muitas notas. Ruth despiu o cadáver da esposa, pois gostou bastante daquele vestido francês. Uma boa limpeza no mesmo tiraria as manchas do assassinato. Com as mãos carregadas, dirigiram-se à saída.
_Finalmente, amor! – disse Ruth. Finalmente, sairemos dessa vida que não nos pertence, atearemos fogo naquele barraco imundo, e partiremos daqui! Viveremos muito bem!
_Isso de fato poderia acontecer, Ruth. – respondeu Miguel. Mas você acha que eu não vi quando você e essa carne jacente aí se atracaram na cozinha?
_Que está dizendo, seu louco? Não nos atracamos! De onde tirou isso?
_Eu vi, Ruth. Não minta. Eu vi, sua vagabunda!
Então, trancou Ruth no apartamento. Saiu portando todas as tralhas objeto do furto.
_Quando sair daí, eu estarei longe, e você certamente presa. Acha mesmo que deixaria um cadáver ambulante usufruir da nova vida ao meu lado? – gritou de fora Miguel, antes de tomar o elevador.
Ruth enlouqueceu. Da varanda do oitavo andar viu Miguel ligar o carro deles e partir, sabia-se lá para onde. Para fora da cidade, do Estado. Certamente iria obter nome novo, companheira nova. E ela apodreceria na prisão. Ligou para a recepção, mas o gordo fora mais esperto, cortando os fios do aparelho, sem que ela tivesse notado. Num ato de desespero, prostrou-se do lado exterior da varanda e tentou descer até o apartamento de baixo, mas a distância entre uma varanda e outra era bem considerável. Perdeu o equilíbrio e mergulhou. Gritou pelo companheiro, mas o mesmo não lha podia ouvir. Estaria em qual prostíbulo? Onde seria a nova casa, o novo...O pensamento foi cortado pelo impacto. A carne foi ferida, mais uma vez.

Projeto Iluminar

Resolvi fornecer um apoio à minha irmã, no tocante à divulgação, ainda que um tanto remota, do seu projeto de cunho sócio-cultural, o qual terei prazer em assistir. Quem sabe não conseguimos alguns adeptos em prol dessa luta?
"O Projeto Iluminar nasceu de uma vontade minha de poder colaborar de alguma maneira para o desenvolvimento do Brasil. É revoltante ver como a cada dia a desigualdade social se acentua de forma alarmante no país e tanto a sociedade quanto as ações políticas simplesmente ignoram a situação. O avanço do capitalismo trouxe com ele um sentimento muito negativo que tomou conta da humanidade rapidamente, de modo a transformar as relações sociais em relações de mercado, visando sempre o benefício próprio. O egoísmo reina absoluto. Ninguém se preocupa com o mundo do outro e o verbo imperativo nessas circunstâncias é ter. Ter de qualquer jeito, a qualquer custo.
O documentário Falcões: meninos do tráfico, exibido pelo Fantástico no dia 19 de março deste ano, deu uma dimensão de como anda o descaso pelas camadas desfavorecidas. A partir daí, ressurgiu em mim o sonho que sempre tive em participar de alguma organização de apoio social.
Acredito que somente por meio da educação o Brasil deixará essa condição de país subdesenvolvido, dono de um profundo abismo social. A educação abre portas, dá oportunidades de se construir uma vida sem que seja necessário recorrer à criminalidade, à mendicância, à marginalidade. Por isso, adotei o livro como instrumento de trabalho do Iluminar.
Objetivos:
· Construção de bibliotecas em escolas que não tenham recursos para tal, nas quais o acesso das crianças aos livros é muitas vezes inexistente ou feito em condições precárias;
· Estímulo à leitura e à preservação do livro;
·Conscientização da importância de conhecer o Brasil em todos os seus aspectos: cultural, social, econômico, político.
· Atividades que facilitem essa compreensão do Brasil como Nação.

As minhas idéias ainda não saíram do papel. Sei que dependem apenas de uma iniciativa minha, começando a visitar escolas de bairros pobres, expondo a ideologia do projeto e buscando adeptos para ele. O Iluminar não tem fins lucrativos e é independente de qualquer ação governamental. Acho que os políticos têm obrigação de colocar a educação como prioridade no plano de governo e não se aproveitar de iniciativas particulares para autopromoção.

Educação: a única maneira de iluminar o Brasil
Por Inês S. Guimarães, 21 de março de 2006."

Perdão

Encarna-me o vulto sinistro dos dias tardios,
Não mais lhe ouço a oscilação silenciosa,
Pois hoje escuto a sua respiração confinante.
Quereriam as naus de Hades içar-me a alma?
Aos braços sacrossantos haveria de atirar-me,
Num clamor desesperado e trôpego, pela liberdade vislumbrada,
E um rio furioso e límpido far-se-ia existente, águas brotadas do Céu,
Para reinar num chão de estrelas, referendando o caminho verdadeiro,Cujas pedras nenhuma mente humana e ardilosa haveria de arrancar.


E, assim, violentas a masmorra,
O teto de tua prisão confinante,
O brado atentatório do escárnio corrupto,
Sobrevindo a ti o grito célere e inebriante.

Pois que és agora negro como a sombra,
Procedente dos teus olhos impávidos,
Retira-te da untada opressiva,
Faz-te de robustez, torna-te sereno e cálido!

Levanta o esmero dos dias,
Reivindica em liberdade as formações frondosas,
Ara com tuas mãos o chão de tua vida,
Consubstancia a quebra destas rochas misteriosas.

Pois que de reinante amargura,
Reduz o insolente, tornado escravo,
Não te enriquece, debalde, vorazmente,
Já que levas contigo o fio da luta!

Uma Continuidade Descontínua


Permaneço, ainda, na tentativa de romper certas, almejando por alcançar determinado conteúdo. Tanto que ainda não me dei por vencido com relação a concluir as duas obras nas quais trabalho atualmente... Não que elas demandem muito tempo, ou um raciocínio brusco e ininterrupto. Pelo contrário, quase nem toquei mais nas mesmas, durante o passar desses dias. No âmbito do princípio da elaboração da primeira, entitulada "A Voz", em menos de uma semana e meia eu contava já 25 folhas, sendo bem exato. Isso, ainda, no ano passado. Atualmente, está ela com suas 29 fl., ou seja, uma redução brusca de elaboração, quem sabe por alguma falta de motivação, eu ainda não sei. A segunda, denominada "Para Sempre" (é, elas são simultâneas), encontra-se perdida em esboços, quase que numa forma de maquete forçada, sem as peças necessárias. Possui, no entanto, 8 folhas, número por mim considerado um prodígio... Ha! Eis alguns trechos de ambas:
A Voz (pg. 7) - conversa entre o anfitrião e o advogado.
"Bem sabe pelos infortúnios os quais já enfrentei nesta vida. Muitas pessoas, bastante próximas a mim, morreram de modo bastante desgraçado, com muito sofrimento. Isso me acabou. Senti a alma angustiada e vazia durante muito tempo. E ainda a sinto. Sofri bastante, Deus sabe o quanto. E, ao final dos males súbitos, o destino ainda põe em meu encalço este pobre debilitado. Não bastavam os momentos ardis, nefastos, pelos quais havia ultrapassado, até com uma certa margem de tolerância, paciência, por parte minha? Às vezes penso se não é um teste divino, para constatar minha aptidão aos Céus. E tenho resistido bravamente, sou-lhe sincero. Entretanto, não suportaria passar por mais uma temporada de sofrimentos e angústias. Bem sei o que aguarda aquela criatura. As dores o tragarão ao abismo profundo, e eu partirei junto, pois não conseguirei enfrentar outra maratona de aflição, preso a observar o leito sob o qual repousa o corpo de mais um parente querido em meio às torturas trazidas pela doença. Isso não! É um argumento eficaz, há de concordar. Daí que não quero ver o sofrimento estampado no olhar deste garoto, que veio a terra com o fim de padecer de todos os agouros. Assim, acabarei com estas angústias, antes mesmo que se elevem ao ponto máximo. Eu mesmo, com estas próprias mãos as quais estou a lhe mostrar. Disponho-me a arredar as noites sombrias cujas obscuridades nos aguardam! Os tenebrosos dias futuros, e tão próximos de nós, repletos dos venenos da alma, das horas tristes e depreciativas do ser, apinhadas de sofrimento e aflição, ver-se-ão escoimados por minha força de vontade. Mesmo que, para este fim, eu precise burlar as mais diversas leis morais e divinas. No entanto, o nosso Deus eterno haverá de censurar-me do claustro aprisionador de espíritos, dos juízos pecaminosos, da fúria dos castigos arrebatadores, tendo em mira que as minhas ações perfazem-se fundadas na glória da supressão dos martírios de um garoto. Este que por tanto já passara na sua ínfima existência, que por tanto já se envenenara com a ruína dos homens, que já se deparara com a morte, a tardança dos tempos idos, a não permanência das vontades, dos sentimentos! Sim, doutor! Positivamente, enfrentarei as leis, sejam elas divinas ou simplesmente elaboradas ou aceitas pelos homens, que as mantém no ápice das bases dos atos, precavendo as possíveis contravenções numa sociedade formada por indivíduos ansiosos pelo futuro! Definitivamente, coloco-me à mercê do juízo de Deus, este sim o legítimo julgador de nós, animais racionais. Faço-o pelo bem de uma alma, por que não dizer pelo bem da vida, afastando, de tal modo, uma antítese irônica.
_Senhor, estou realmente surpreso, embasbacado, por ter ouvido tal relato, tais concatenações futuras, as quais tem vontade de empreender. – afirmou Silas, expelindo, agora, imensas baforadas do cachimbo de que usufruía naquele instante. É, decerto, algo para se examinar atentamente. A comiseração que o senhor expõe é digna de estudos objetivos e subjetivos. Algoz de um ser, mas por paixão, por puro amor, visando a um bem altivo, a uma ação, certamente, das mais corajosas. No entanto, há de ponderar as reações, as conseqüências de tal ação. O senhor, como já o disse, estaria por burlar as nossas leis; e não apenas estas, como também as referentes a todo o nosso pensamento religioso, indo de encontro ao bem mais precioso que podemos possuir, qual seja, a existência! A vida! Dela, só os seus legítimos detentores podem dispor. Ou estes ou o Nosso Pai! Do contrário, os agressores de tal domínio estarão por cometer o mais hediondo pecado vivente no nosso plano, o de homicídio! E com certeza padecerá do juízo divino, do acerto de contas para com aquele ser lesado, pois o que cá não pagamos, cobrar-nos-ão do outro lado, não há dúvidas! Por isso, condeno esta atitude a qual, apesar de fundada em sentimentos verdadeiros e dignos, indubitavelmente nobres, vem a ser um disparate, um atentado sem tamanho ou limite. Peço-lhe que refaça os planos! Outras soluções haveremos de encontrar sem a necessidade desta vileza!(...)"
Para Sempre (pg. 4) - o garoto encontra-se diante do muro.
“E bem sabia que as escaladas da vida demorariam, tendo em vista o peso das aflições em sua mente impúbere. Ora, mas quantas tentações! Quedava-se numa brandura insofismável, uma sensação realmente despida de quaisquer metodismos, algo parecido com o laissez-faire! E por que não as aplicações de certas instituições em prol do corpo orgânico? Apesar de não entender bem a amplitude de tais conjecturas, aprazia-se em meditar acerca dos fatos ilusórios. Corria velozmente, porventura buscando algumas respostas. Alguns velhos esmorecidos, sentados a um banco da vasta praça, no principal pólo da cidade, observavam-no em sua trajetória lânguida, espúria e incondicionada. E não quereriam eles ainda usufruir-se daquelas pernas, cujas passadas mais se assemelhavam a uma legítima ventania, cuja força a tudo arrasta?
E eis que se deparou com um enorme muro. Já estava ali, qualquer tempo a ser perdido poderia pôr tudo à prova, sua amizade incólume, valores intrínsecos, não mais isolados agora. E que ela pensaria sobre aquele atraso infundado? Perdoar-lhe-ia as desavenças? Ou atiraria ao longe o acontecimento mais importante de sua vida? E, na verdade, poderia ela saber que aquele era mesmo o acontecimento mais importante, a evitar pormenores não atrativos, perfazendo-se sublime como uma paisagem revigorante? (...)”

A vós!



Pés unidos, mãos que tocam os lábios,
A oração que brota do peito tremulante,
Luzes do alvorecer refletem nos orvalhos,
Que se aproximem, pois, os termos iniciantes!

Fulgor almejado, qual bênção dos céus,
Lágrima única, a nascer da órbita funda,
Desbrava incessante o rosto anfitrião,
Num rastro plangente e efêmero redunda.

Pois que a vida, trata-se de uma moldura,
Pois que a vida, encobre-se no véu dos sonhos,
Deixar-lhe-ia sobrepor a realidade bruta,
Pincelada consoante os desejos dos seres?

Os pés desgarram-se, coagidos,
Pela volição à vista da manhã,
Cujas faces externam-se como forma de castigo,
Maltratam àqueles a quem abandonou a ambição.

Que haveríeis de entender do todo?
Não suportais o mistério de abraços incontidos,
Quereis abster-se do que lhes sois desconhecidos,
Acomete a vós, debalde, a própria cessação.

E, aos pés, não há de ser mais fácil,
A resignação interminável da prostração ao solo?
Às mãos, untadas pelo suor da fé,
Não lhes é mais cômoda a posição enraizada?

Quem sois, em vos faltar o respeito mútuo,
Dizei-vos toleráveis e dignos dos portões,
Dizei-vos conscientes, herdeiros, amorosos,
Porém, não consigais praticar,
As claras regras outrora, a vós, ofertadas.

A vós, melhor a fala desnuda de senso.
A vós, melhor a permanência material,
A vós, melhor o evasivo cântico dos interesses,
A vós, a luta armada!

Quem


Mais um dia raiou na metrópole. Alfredo despiu-se vagarosamente, como de costume, e dirigiu-se ao banheiro. A parede apresentava aspectos de mofo, o reboco surgia miserável, e vermes brotavam do interior pegajoso e negro. As baratas alimentavam-se deles, segundo o pensamento de Alfredo, tendo em vista que nunca vira baratas mais gordas, em toda a sua vida, do que as daquele local da cidade. Morava ele, há exatamente três meses, num dos bairros da periferia, cuja infra-estrutura deixava a desejar. Ele foi um dia, junto com o seu colega Efraim, protestar frente ao Legislativo, acompanhado dos líderes do bairro e de uma multidão, todos praticamente conhecidos. Porém, até o exato instante, nada se havia concretizado para melhorar a situação, e assim permanecia a conjuntura das casas dali. Um mal-cheiro exalava por todos os cantos do bairro, devido à falta de saneamento adequado. O esgoto muitas vezes era encontrado a céu aberto, correndo como uma criança feliz, brincando por entre os canais da calçada até unir-se a uma poça de água escura e podre. Os bueiros geralmente estavam entupidos, daí, muitas vezes, a formação dessas poças. Algumas chegavam a invadir barracos, e as crianças neles residentes imaginavam ser ali a sua piscina natural, e pensavam como mergulhadores. Decerto, muitas delas tinham no hospital o seu segundo lar.
E nesse ínterim, Alfredo terminava o seu banho matinal, fazendo uso de um pedaço de sabonete colorido, resultado da junção de muitos outros anteriores. Após, escovava os dentes. A escova amarelada pela ação do tempo ainda fazia milagres em sua boca. A barba continuava sempre mal-feita, pois a gilete cega não contribuía muito para aquela causa. Pegou o saco de pães de cima da geladeira e retirou dois, os quais estavam duros como uma rocha. Porém, nada como um café ralo e sem leite para fazê-los comestíveis. E assim saiu para mais um dia de labor. Era adepto das idéias calvinistas – o trabalho nunca há de cansar. Arranjara um emprego no porto, mediante ajuda de Efraim. Sua função consistia em transportar cargas manualmente, mas ainda sem usar o guindaste. Para manejá-lo, seria mister uma promoção; no entanto, como ele ainda era novo no serviço, tal acontecimento poderia demorar um tanto. Assim, nada como a força dos braços para levantar as caixas, ou as sacas de grãos que comumentemente adentravam nos boxes.
Saiu levando apenas a carteira. Afinal, o que mais haveria de servir para desempenhar um trabalho como aquele? Começou a descer uma viela, em que labutavam pequenos comerciantes. Era a “feira do calçadão”, como costumavam denominar aquela ladeira emporcalhada. O odor das leguminosas alcançava muito além do que se poderia imaginar. Alfredo, certo dia, comprou lá uma maçã pra distrair os dentes e se arrependeu, pois encontrou uma pequena larva gosmenta. Esta havia se adiantado a ele, certamente. A partir de então, se fosse comprar frutas, fá-lo-ia na venda de seu Cosme, porque seu Cosme sempre garantia a procedência dos produtos. Alfredo ia terminando de concluir a descida, quando olhou para uma das mangas da camisa azul, a qual apresentava um bolor negro. Vai ver os fungos haviam passado por ali, deixando o seu rastro asqueroso. Pôs-se ele a passar as unhas naquilo, quando sentiu um toque numa de suas nádegas. Virou-se e viu um rapaz magro e sem camisa, correndo alucinado, sem olhar para trás. Apalpou ali e certificou-se de que nunca mais acharia a sua carteira.
Ivanhoé correu o mais que pôde. O suor descia de sua face oleosa, às vezes tampando a visão. E quando caía um pouco dele em seus olhos, o ardor era interminável, mas não havia tempo para protestar. Correu por uns cinco minutos até alcançar uma rua sem calçamento e enlameada, situada muito além do local onde havia furtado Alfredo. Só ali se sentiu seguro para examinar o produto do furto. Jogou na lama a identidade de Alfredo, como também seu CPF. Procurou por cartões bancários, mas não os encontrou. Por fim, abriu a parte destinada a notas e lá achou vinte reais. Subiu aquela rua a passos rápidos e trôpegos. Quebrou a sandália numa pedra e cortou o dedo. Parou diante de uma casinha pintada de rosa, uma das poucas arrumadas do ambiente. Bateu palmas e uma adolescente de pele cor-de-café apareceu, ainda trajando um pijama que mal lhe cobria as partes íntimas.
_Aqui, consegui o que estava devendo ao seu irmão – disse Ivanhoé, ainda recuperando fôlego.
_Mas o que é isso, Ivan? – perquiriu a garota. Aqui só tem vinte, e você deve a ele trinta. Assim, você vai ter que acertar as contas com ele. Desse jeito você sai da boca, e meu irmão te dedura, ele põe a polícia atrás de você... E a gente, depois disso, como fica? Vai namorar ainda? Você sabe que não. Pra você me namorar, meu irmão tem que gostar de você. E com essa confusão, nem adianta insistir.
_E cadê seu irmão?
_Foi pegar uma encomenda lá pra cima e ainda não voltou não. – respondeu a garota, com um olhar um pouco distante. A voz saía-lhe meio engasgada e rouca.
_Ora, mas foi só um saquinho, cadê que ele percebe? Corta essa aí! – alteou a voz Ivanhoé, franzindo as sobrancelhas com força, enquanto falava.
_Você sabe que ele nota, Ivan! – respondeu a garota, num tom imperativo. E mesmo assim, o que não passa por ele, passa pelo pessoal lá da boca. Só onde você fica, tem mais seis. O que é? Você vai ter que conseguir mais dez reais.
Ivanhoé pôs as mãos na cintura, andou de um lado pro outro, num frenesi desvairado e chutou uma pedrinha.
_Mas que diabo, já começo a porcaria do dia assim? – protestou. A garota mal ligava para aquela situação. Enquanto ele reclamava acerca da vida, ela limpava umas crostas pretas ao canto de suas unhas, com a língua retorcida e à mostra.
_Pois faz assim – disse o rapaz, finalmente. Minha mãe está sem grana, mas minha tia lá do bairro dos pneus deve ter pra emprestar. Eu vou ter que ir lá. Você fica com dez reais aí e dá quando ele chegar. Eu vou atrás do resto, mas vou precisar de um trocado pro ônibus. Vou levar esses dez e aí eu retorno com os vinte que faltam. Entendeu tudo, certo? Diga pra ele.
_Tá bem, eu digo. – disse a garota, calmamente.
_Vou indo. Tem uma ervinha aí?
_Tem não. Levou tudo daí... Tudo já está lá.
_Nem essa sorte eu tenho? – perguntou Ivanhoé ao mundo.
Beijou a garota até as línguas tocarem-se profundamente e deu meia-volta, deixando dez reais com ela. A adolescente retornou para o interior da casa rosada e pensou no vestido que havia visto no mercado, há dois dias atrás, enquanto estava por aí com as colegas.
Ivanhoé caminhava a passos largos. Passou em seu casebre, pegou uma blusa e trocou de short. Pôs o seu crucifixo da sorte no pescoço e saiu. Após, foi em direção à estação de ônibus dali de perto. A viação, com destino ao bairro dos pneus, surgiu em quinze minutos e ele entrou. A entrada era pela frente. Ele subiu as escadas e parou na catraca, enfiando os dedos no bolso de trás do short. Ficou assim por um minuto, enquanto o ônibus saía já do bairro.
_Ora, mas não é o diabo, esqueci a grana no short que troquei, valha-me! – pensou.
As pessoas já o encaravam. O cobrador não achava graça na cena e principiou um batuque com os dedos. Ivanhoé, então, gritou:
_Eu não estou com grana, mas vou ficar bem aqui! Nem rolo a catraca nem desço do ônibus, só dessa vez, seu cobrador. Oh, motorista, está ouvindo o que estou dizendo, certo? Pessoal, é só dessa vez, porque eu não tenho condições pra ir visitar minha avó que está doente, por caridade. Oh, seu cobrador...
_O dinheiro, rapaz. – disse o cobrador, cuja barba negra e espessa acentuava-lhe a expressão de impaciência na face. Não tem não? Zé, pare o ônibus!
Ivanhoé ainda tentou se agarrar aos ferros do corredor, mas o cobrador era forte como um touro. Levantou-se e o agarrou. O motorista não ficou apenas observando e deu um tapa na cabeça do rapaz. Este, na luta com os dois, deixou cair o pingente. O menino que estava perto da briga, no assento da frente, pisou na cruz, para ninguém vê-la. Continuou tranqüilamente a assistir Ivanhoé ser chutado para fora do ônibus.
Matinhos era uma criança franzina, de seus já doze anos. Mas quem o via, dava-lhe, no máximo sete. O médico do bairro sempre dizia a sua mãe que era efeito dos vermes que habitavam o estômago do menino. “Matinhos, não ande descalço; Matinhos, não coma os doces do seu Nestor; Matinhos, lave as mãos.” – estas as recomendações maternas, as quais sempre deixavam-no em meio a um ataque histérico. E, naquele ônibus, Matinhos carregava o isopor de coxinhas preparadas pela sua mãe, para que ele as vendesse na porta de um colégio localizado num dos bairros de classe média da metrópole. Então, retirou o pé de cima do objeto e viu o quanto era bonita aquela cruz, dourada como o sol. Será que era mesmo de ouro? Quanto valeria? Foi olhando pra ela até a hora de descer.
Já à frente do colégio, mal notava o tempo passar, olhando para o crucifixo. Até quando os alunos saíram, horário que era a sua deixa para tentar obter algum lucro a favor da família, não se importou em ir até eles, pois estava perdido em seus sonhos. Por quanto poderia vender aquilo? Seria melhor pegar o dinheiro, passar em casa, pegar a mãe e ir embora para nunca mais voltar, lá deixando o padrasto espancador... Oh, já lhe foram duros golpes, tanto que levava consigo a face inchada de tantos sopapos. E sua mãe? Era obrigada a trabalhar diuturnamente para sustentar o canalha. Quantos sacrifícios aquela mulher desempenhava. Durante o dia, encarregava-se das costuras a ela encomendadas, em prol das vizinhas desprovidas do dom da linha. À tarde, ia vender os salgados feitos até o meio-dia, com a ajuda do filho. E saía pela cidade inteira, à procura de uma freguesia de base. À noite, ao retornar a casa exausta, ainda conseguia tempo para beijar Matinhos e tomar alguns pontapés do marido, o qual passara o dia inteiro jogando bilhar num barzinho perto do casebre onde moram.
Matinhos já não se continha. Necessitava com urgência de alguma resposta, precisava saber o que fazer ao certo. Deixou de lado o recipiente de salgados, pois aquilo não mais importaria em sua futura vida, e seguiu em direção a um bar-restaurante localizado a alguns metros da rua da escola. Lá era bem organizado, com as toalhas limpas e perfumadas, e arranjos de flores sintéticas adornavam as mesas, algumas das quais sitas na calçada mesmo, pois determinados clientes preferiam comer respirando o ar de fora da cidade, ainda que um tanto poluído. A uma dessas mesas ao ar-livre, sentava-se um homem de terno, a saborear um churrasco. Degustava-o com muito prazer, e a cada três garfadas, suspirava de exaltação. Matinhos aproximou-se dele:
_Moço... – chamou-o, prostrando-se em frente ao homem, cujo ar adquiriu feições agora alteradas ao ver a imagem do garoto sujo e suado, a camisa desfiada, o sapato esburacado.
_Não tenho nada... Só tenho o do almoço. – respondeu, após a longa análise.
_Dá pro senhor ver se isso aqui vale muito? – perguntou, retirando do pescoço a corrente que sustentava a cruz brilhante. Entregou-a nas mãos do homem. Este olhou-a atentamente, apertou-a contra seus dedos e a devolveu ao menino.
_Isso aí é só pintado com tinta dourada, menino. Agora, sai daqui, que estou comendo, não vê? Quer acabar de me estragar o apetite?
Matinhos estacou-se por um tempo ainda, o olhar vidrado, mirando para o nada absoluto. Foi preciso o homem empurrá-lo com uma das mãos para que voltasse à realidade. Recobrada a consciência, adveio-lhe o erro que foi ter abandonado o recipiente com os salgados perto da escola, por causa de uma coisa sem valor... E se não mais o achasse? Os esforços da mãe seriam vãos? Revestir-se-ia ele com a pele da pior pessoa do mundo. Com lagrimas nos olhos, correu até o local onde o abandonou, mas já não estava mais lá. Os gritos saíram-lhe sem pestanejar, num acesso repentino de medo e angústia. Após jogar a cruz no chão e pisá-la várias vezes, levou as mãos à cabeça e começou um movimento escandalizado. Os olhos e as narinas estavam empapados, e um filete de saliva escorria-lhe dos lábios. O povo que passava perto olhava sem reação, perante cena tão súbita e incomum. Matinhos começou a correr de um lado para o outro no âmbito de seu devaneio, até o momento de não ter mais a noção da realidade. Tanto que aproximou-se demais da rua, até pôr os pés nela, a andar para o seu centro. Um carro conduzido por alguém distraído chocou-se com o menino, cujo corpo colidiu com o pára-brisa, rachando-o em vários pedaços.
Raquel saiu pálida de seu carro. As mãos tremiam vertiginosamente, as pernas conservavam-se bambas, traiçoeiras. Tanto que foi preciso retirar os sapatos de salto extravagante. Uma rodinha de humanos já se formava, observando a tudo. A mulher chamou dois rapazes e juntos enfiaram Matinhos no carro. Partiu, então, direto para o hospital a duas quadras dali. Matinhos foi internado com um leve traumatismo, mas nada que levasse à morte, segundo o médico que atendeu. Raquel correu do hospital e nunca mais voltou lá. Correu ouvindo os gritos da enfermeira: “a senhora é a mãe? A senhora é a mãe? Aonde está indo?”.
O desespero que a seguiu foi tão enérgico que ela acabou abandonando o carro numa avenida bem movimentada. Por enquanto não mexeria nele. Vai que o menino morre... Que aqueles rapazes não reconheceriam o veículo, ou alguém da multidão... Ora, seria óbvio que alguém se lembraria. E aquele vidro rachado? Não queria nem chegar perto dele. Mas o carro está registrado em seu nome... Será fácil descobrir...
Não esperou mais um momento. Correu até o escritório, que era ali perto mesmo, e era para onde estava indo, quando a colisão a impediu de seguir a via costumeira. A aflição era tanta, apoderava-se impávida de seu corpo, que esquecera de calçar novamente os sapatos, enquanto subia os degraus que davam para a entrada do prédio. E percebeu que também esteve no hospital sem eles. Mas que importa isso agora?
Pediu ao ascensorista o sexto andar. O rapaz a olhou com os cantos dos olhos, sem dizer qualquer coisa. O elevador chegou ao destino e ela correu para o seu escritório, nele adentrando esbaforida. Pelo visto, o chefe ainda não havia retornado.
_Lurdes, Lurdes do céu, ajuda-me, mulher, que me houve uma desgraça! – Raquel tentava dizer, em meio a gemidos e tons ofegantes.
_Mas o que foi, Raquel? Minha nossa, sente-se, vou pegar um copo d’água, está machucada? – socorreu Lurdes, sua companheira de ofício.
_Não quero água, esqueça isso, quero é que me ajude. Pois que estava eu retornando pra cá quando um menino surgiu no meio da pista, acho que era um desses de rua, muito pobre e, quando eu me dei conta, ele já estava em cima do carro, rebolando, ai, Jesus!...
_Atropelou um menino de rua? E onde está ele, o carro? Ave-Maria, mulher! Fala!
_O menino, eu deixei naquele hospital ali de trás. O carro está parado no meio da avenida, com o vidro todo rachado, ai minha Santa Aquerupita, que hei de fazer?
_Calma, Raquel, calma! – disse Lurdes. Você o socorreu, é um ponto a seu favor. Você tem que voltar lá e contar a verdade porque...
Enquanto ela falava, o telefone tocou. Lurdes pediu um instante para atendê-lo. Espalmou as duas mãos na face de Raquel pedindo calma, e que esperasse um minuto. Daí, pôs-se a falar ao telefone. E, repentinamente, sua face passou de um tom alarmado e pálido para um arroxeado, frenético. O corpo parecia mais uma estátua. As mãos quedaram-se cerradas, os dedos a arrancar pedaços de carne das palmas. Só se ouvia murmúrios afetados por um sentimento repentino e inexplicável, até o momento: “Você tem certeza? Onde? Você está falando sério?”. Do canto de sua boca, uma espuma tenra de saliva principiava a despontar. Os olhos dilataram-se. Bateu o telefone e correu.
_Raquel, eu volto num instante... Só vou resolver uma coisa que surgiu de última hora e eu retorno. Enquanto isso, não faça nenhuma besteira. E acalme-se!
Desceu a escadaria com muita pressa, quase caindo. Foi à garagem, ligou o carro e saiu enlouquecida. Pegou o viaduto e foi para bem longe, quase saindo da cidade. Estacionou o carro num motel. Saiu em disparada até a recepção. Obteve a informação que queria e invadiu um dos quartos. O seu marido encontrava-se ali, satisfazendo a sua libido e a de Maria, a vizinha viúva do casal. Lurdes não acreditava no que via. Seu marido ficou sem reação, boquiaberto, espichado na cama, despido, enquanto Maria procurava suas roupas, que estavam emboladas com as do parceiro de aventuras. Lurdes pegou o saca-rolhas do champanhe, pois não havia encontrado arma mais potente no recinto, e partiu para cima do marido, enquanto a parceira escapulia trêmula. Passaram-se alguns segundos de luta, até que o marido, com a finalidade de se autoproteger, desferiu um chute no meio do nariz de Lurdes, seguido de um estalo. A mulher caiu para trás, tremendo dos pés à cabeça, com o sangue brotando-lhe das narinas sem parar e os olhos revirados, sem se ver as pupilas. Seria um acesso convulsivo?
Rogério não quis saber. Vestiu-se o mais rápido que pôde e tentou sair do quarto. A recepcionista foi ver o que se sucedia, e levou um safanão do homem, que corria dali. Ligou o seu carro, enquanto mirava o da mulher, estacionado bem próximo ao seu, aquele carro que ela havia recebido como presente de sete anos de casamento. Enquanto retornava ao apartamento, para pegar o que precisava na fuga, uma pessoa lhe fez desviar a atenção na calçada da avenida, levando-o de encontro a um poste. Os reflexos apurados não foram suficientes. Rogério foi atirado para fora do veículo com a rapidez de um raio.A pessoa objeto da distração assistiu pasma à cena da colisão. E, ao chegar em casa, estava a cena passando no noticiário local da TV. Informou à família que ela havia presenciado a morte do homem. Afinal, quem seria ele?

Tecnoclaustrofobia


Flavinho acordou para mais um dia cheio de aventuras. Com certeza o seria, pois se preparava para o primeiro dia de aula na quinta série. Desceu da cama, ainda esfregando os olhos, sentindo um pouco de frio, pois o dia amanhecera nublado, com um ventinho de arrepiar os pêlos da pele. Como de costume, a primeira coisa que fez foi lavar o rosto para despertar mais rapidamente. A pior hora era a de escovar os dentes, fazia-o com muita sofreguidão. A mochila localizava-se sob a escrivaninha, os livros sempre desarranjados, espalhados desordenadamente. Apesar de novos, sempre matava a curiosidade de folheá-los, sentir aquele cheirinho de livro novo, mirar as figuras e letras, as quais, a cada ano, aumentavam de quantidade e complexidade.
Pôs os necessários na mochila e desceu, já trajando o uniforme escolar. A moça que realizava os serviços domésticos serviu o café matinal, e sentaram-se à mesa o garoto e sua mãe, cujos cabelos encontravam-se novamente amarrados daquela maneira, com uma espécie de coque por detrás, puxados na frente, deixando transparecer a testa. A blusa e a saia impecáveis, a maquilagem a mais perfeita, sem dúvida era uma mulher bonita. Não se falaram durante o café, tendo em vista as inúmeras chamadas ao celular da mãe, requisitada pelos serviços indispensáveis à empresa.
_Mas é claro que sim. Como não? E os formulários de venda? A consultoria atuou com sucesso? Conte-me como foi ontem. Estarei aí em instantes.
Mais meio minuto e novamente o aparelho tremia sob a mesa, fazendo ecoar um som ensurdecedor pela casa, acutíssimo e efêmero, devido à pressa angustiada da mãe em saciar-lhe os berros, levando-o ao ouvido direito. Flavinho apenas assistia àquela cena corriqueira, e tratava de comer o seu pão integral com queijo branco, regado a suco de laranja “light”. A mãe se levantou de repente, sem concluir a refeição.
_Flávio, – falou em tom sério – não poderei levá-lo à escola hoje, pois tenho um compromisso urgentíssimo. Chamarei um táxi que deixará você lá, certo? Tchau.
Saiu, sem olhar para trás. Os sapatos produzindo um forte ruído na área do elevador. Foi e retornou. Abriu a porta e entrou, pois havia esquecido a bolsa, com os documentos do carro, a carteira e o “lap-top” empresarial. Onde estaria com a cabeça? Bateu a porta, ao sair.
O táxi levou Flavinho à escola, para o seu primeiro dia de aula, na quinta série. Alguns alunos que estudaram com ele na quarta ficaram na sua sala, e o receberam de forma muito amistosa.
_E aí, Flavinho? Como foram as férias? Eu fui com minha família para o litoral. Lá meu pai me comprou esse celular que tira fotos instantâneas. Vem aqui, vamos tirar uma, sorria! – falou, puxando o garoto pra perto. A foto surgiu na tela do celular.
Ao fundo da sala, encontrou seu melhor amigo, o qual portava um joguinho portátil de última geração. Estava tão entretido que não notou sua chegada. Quando finalmente despertou, deparou-se com Flavinho.
_Tudo beleza? Como está? Vem aqui, vamos jogar isso aqui, é muito massa! Aperte aqui e vá pegando a comida, senão você morre. Cuidado, você vai errar! Olhe o obstáculo! Cara, como você é ruim!
O jogo tocou uma música para derrotados. O amigo arrancou-o das mãos de Flavinho e recomeçou a aventura. A cada pontuação obtida, retorcia a língua para um lado e jogava os braços para cima e para baixo, na esperança de o jogo submeter-se àqueles movimentos externos.
O intervalo custou a chegar. Os alunos logo tomaram todo o espaço da cantina. Um garoto, cujas feições não eram nada amigáveis, fez Flavinho cair e derrubar o seu lanche.
_O que é isso, está esbarrando em mim? Quer apanhar?
Flavinho, que estava meio confuso naquele dia, com pensamentos distantes, partiu com tudo pra cima do garoto, que era da sétima série. Os dois rolaram no chão, a socos e pontapés, mas foram logo separados pelo supervisor. Flavinho saiu com arranhões no peito e na barriga. Porém, não sentia ardor algum. O supervisor levou os brigões para a diretoria.
_Tudo bem, dessa vez passa, não vou dar suspensão e nem notificar os seus pais. No entanto, eu aviso: que seja a primeira e única vez. Sejam bons amigos daqui pra frente – disse a diretora, sem quase olhar para os garotos, pois estava com o rosto enfiado no computador, acompanhando uma discussão presente na rede, sobre como melhorar o sistema educacional de uma forma geral.
O transporte escolar devolveu o menino à sua casa. A moça disse que sua mãe não viria almoçar, visto que teria uma reunião importante às quatorze horas, como se podia ouvir na secretária eletrônica. Flavinho almoçou assistindo à TV, na qual passava um noticiário, que tratava sobre um incêndio na Coréia do Sul. Desligou a TV e foi ouvir o CD de rock no “microsistem”, deitado no chão e olhando para a foto de sua mãe dentro de um porta-retrato, localizado sob o criado-mudo. Olhava também para uma foto de Salvador, pregada na parede, lembrança de seu falecido pai, numa de suas muitas viagens pelo país. Morria de vontade de conhecer a Bahia. A empregada doméstica anunciou sua ida, lembrando que o jantar já estava pronto, só precisava aquecê-lo no microondas. Sua mãe chegou às vinte horas, mostrando uma cara fatigada. Quando ele apareceu na cozinha, ela já estava jantando, e passava continuamente as mãos nos olhos, descendo até a boca. O celular tocou mais duas vezes. Ela comeu o jantar frio, vai ver esqueceu-se de aquecê-lo. Levantou rapidamente e ligou o computador, para acompanhar o resultado da reunião na rede. O celular tocou no quarto mais duas vezes. Flavinho sentou-se na cama da mãe, assistindo ao esforço coordenado e concentrado que esta efetivava perante os aparelhos. Quando ela terminou a segunda ligação, o garoto murmurou:
_Mãe, hoje teve pouca lição, mas é porque foi o primeiro dia. Teve um menino que me empurrou, contudo foi culpa dele, eu só fiz me defender. E também...
_Olha, filhinho, mamãe precisa terminar isso aqui, que é pra amanhã de manhã. Daqui a pouco você me conta, tudo bem?
Flavinho consentiu e dirigiu-se ao seu quarto. Esperou até as vinte e duas horas, mas os olhos o traíram, cerrando-se por completo. Quando acordou, já era mais uma manhã fria e nublada.
Algum tempo se passou, e Flavinho já se encontrava na oitava série, somando seus quatorze anos de idade, em plena adolescência. Caminhou até a escola, pois a mãe já havia ido trabalhar, e ele não precisava mais de táxi. O primeiro dia foi normal, reviu os velhos amigos de salas passadas. Seu melhor amigo não ficou em sua sala nova. Houve um que lhe mostrou fotos tiradas no Chile, em sua viagem de férias. Percebeu que havia muito mais novatos de cara tímida, como pássaros fora do ninho. Num deles, seus olhos pararam. Durante a realização da chamada, ficou sabendo seu nome: Layla. Durante o intervalo, obteve coragem e sentou-se próximo a ela. Notou que havia escolhido as mesmas coisas que ela, um suco de embalagem e um sanduíche natural.
_Olha só, temos o mesmo gosto – disse, mediante uma voz trêmula e engasgada.
_É mesmo – respondeu a garota, secamente.
_De onde você vem? De outro colégio daqui mesmo, ou de outra cidade? – insistiu, para quebrar o gelo inicial.
_Vim de um pouco longe, de Salvador. Meu pai foi transferido e vim pra cá com ele, porque ganhou minha guarda.
_Vem de Salvador? É mesmo? Que legal, queria tanto conhecer lá!
_Lá é bonito mesmo. – e sorriu com um cantinho da boca. _Mas não vou demorar muito tempo por aqui, porque acho que vão transferir meu pai mais para o sul.
_E não quer me levar junto, quando você se mudar?
A garota olhou atônita para o rosto de Flavinho.
Ele retornou para a casa, onde novamente almoçou sozinho. A secretária eletrônica anunciou mais uma reunião da mãe, de caráter emergencial para a empresa. Ela é muito importante lá. Quando chegou, passava das vinte e uma horas. Flavinho já havia jantado e fez companhia para a mãe, enquanto esta comia uma salada trazida da rua, com água para descer melhor. O celular, agora de última geração, distribuído aos mais bem-sucedidos na empresa, tocou apenas uma vez, o que era um recorde. A mãe, vendo que não mais tocava, disparou a sacudir a perna direita, de forma ávida. Engoliu as últimas tiras de alface e deixou a louça sob a pia, para a empregada lavar no dia seguinte. Dirigiu-se ao computador, mas a rede não logrou êxito em conectar, devido a uma queda no sistema de telefonia. Sob aquela intempérie, começou a surrar a mão aberta o computador.
_Essa porcaria, quando a gente mais precisa, ele não funciona! Anda, pega!
E as pancadas aumentaram de potência. Até que Flavinho, de espectador, arriscou uma fala:
_Mãe, até que o meu primeiro dia na escola foi calmo. Pena que meu melhor amigo não ficou na mesma sala que eu. Conheci uma menina chamada Layla, ela é nova na escola e na cidade, e muito legal, mas parece que vai se mudar, porque o pai foi...
_Filho, só um instante, porque eu preciso conectar aqui, senão vou perder o resumo da ata... Preciso saber também qual foi a decisão de uma empresa fornecedora da nossa... Dê-me só um tempinho, vá pro seu quarto, que dou uma passada lá depois que terminar aqui.
Flavinho rumou para o quarto, como de costume. De lá, ouviu o celular da mãe tocar no quarto dela.
_Sim, eu sei, estou tentando, mas é que deu um problema na linha...
No segundo dia de aula do primeiro ano, Flavinho retornou a casa com os olhos formigando e uma paz no espírito. Conheceu Juca e Leco, dois rapazes de classe média alta. Saíram no carro do pai de Juca e só retornaram às dezesseis horas. Cambaleou na cozinha, e precisou sentar-se numa cadeira. Sentiu uma fortíssima dor de cabeça. Foi ao banheiro pegar um analgésico. Mirou-se no espelho, os olhos assustadoramente vermelhos, os cabelos desgrenhados. O telefone tocou. Pensou ser sua mãe. Mas era Juca, convidando-o para mais uma saída. Desceu para esperá-lo.
Na reunião, a mãe recebeu a notícia de que o carro em que seu filho estava chocou-se contra um poste. Flavinho estava no banco da frente, ao lado do motorista, e foi atirado violentamente para fora do veículo. Juca encontrava-se no hospital, em coma e com traumatismo craniano. No carro, vestígios de um pó branco anunciaram o acontecido. A mãe pôs as mãos nos olhos e foi descendo até a boca, soluçando, as lágrimas pendendo de seus olhos cansados. O seu chefe, um dos diretores da empresa, deu-lhe a semana de folga como um gesto de comiseração, até porque era um homem de escrúpulos e boa índole, além de bem-sucedido na vida, tal como a mãe de Flavinho. Ela foi guiada para efetivar a confirmação do corpo. Soube-se que era de Flavinho, mesmo. Mais pranto. Layla soube da notícia no sul, quando estava com seu novo namorado, acessando a internet. A mãe de Flavinho, em seu quarto, realizou uma ligação pelo celular, a ligação mais incômoda que já efetivou, mais do que aquelas para conhecer as notícias das empresas fornecedoras, ou aquelas em que se queria saber a respeito dos resultados das reuniões: ligou para encomendar um caixão...

Jornada


Um juízo pré-contemporâneo, ou uma infinidade de coisas... Eis um sonho!

I – “Iter ta sacrum”:
Longos e tortuosos perfazem-se os caminhos,
Muitas pedras irremovíveis estão assentadas defronte da essência melancólica,
Dos seres interessados nas perquirições referentes ao claustro de seu interior.
Uma tia, cujos pés já quase tocavam os jardins eternos, o barro das cruzes multiplicadas,
Prostrada em seu leito permanente, absorta, na espera de arcanjos puxarem-lhe as mãos cansadas de combater as intempéries da vida,
Chama para si a criança viva, dos olhos intensos e confusos, a mirar a cena lúgubre e pecaminosa da triste velhinha que já não tardaria a descansar:
_Deixo-te, criança, pois esmoreço nas frias brumas da morte, cuja foice maligna já me inflige o golpe fatal. Decerto, estas mãos descarnadas não mais haverão de afagar-lhe quando chorares; estas pernas entorpecidas já não poderão socorrer-te, quando estiveres acometida por quaisquer infortúnios; estes olhos não mais verão a pureza da tua alma serena, cujo brilho crescerá e envolver-se-á no mais lindo botão de flor do mais belo pomar da vida; este corpo corroído não mais caminhará junto ao teu, perdoa-me as lágrimas, que são as últimas. Quero que saias daqui e trilha os caminhos ao abrires a porta que te prende!
E, num suspiro cálido e derradeiro, deixou o espírito a encanecida cabana, em que a lenha ardente à lareira emitia névoas acinzentadas pela chaminé, lembrando tenras nuvens de chuva. Não caiu a criança em desespero, e abriu a porta que dava para os caminhos de que falou a tia. Passou a andar brandamente pelos mesmos.

II – A abelha:
No primeiro deles, encontrou uma abelha solitária, com as patas cheias de pólen, o que a cansava em demasia:
_Pequenino ser, não quer ajudar-me a carregar estes diminutos grãos de pólen, os quais atormentam a minha jornada de volta à colméia em que vivem as minhas irmãs? Eu sou um insetozinho tão ínfimo, não posso alcançar o meu rumo sob semelhantes condições... Porém, com o seu tamanho, a tarefa não tardará a ser cumprida!
E pôs-se a criança a dividir a quantidade de pólen com a abelha e a acompanhou até onde residiam os demais insetos. Ao chegar, solicitou à abelha e às irmãs o punhado de mel que um dos milhares de grãos de pólen levados produziria, para enfrentar o grande trajeto que lhe esperava.
_Disparate! Foi com este interesse sorrateiro e atroz que me ajudou a carregá-los? Dispôs-se a me acudir visando a um fim futuro? Pois não passa de um pseudo-humano, sai de minha vista ou pico-lhe até a morte, há de constatar!
Correu dali a criança, temendo a fúria das ferroadas de mil abelhas embrutecidas.
Colocou-se novamente à estrada.

III – O lobo:
Muito mais adiante, deparou-se com um lobo, à frente do qual jazia um alce estrangulado, fruto de uma caçada bem-sucedida.
_Enfim um ser bondoso, que não negará assistência a um lobo cansado e ferido; ajudar-me-á a levar este pedaço de carne jacente até a minha toca, onde vivem os meus famintos filhotes? Sem você, eles morrerão de fome.
E pôs-se a criança a carregar aquele fardo mal-cheiroso ao local designado. Lá chegando, apareceram os filhotes e deram início a um banquete voraz, em companhia do pai. Ela tentou arrancar um filete de carne, mas logo um dos irmãos rosnou-lhe, produzindo uma careta de fera acuada. Mordeu-lhe o tornozelo, o qual sangrou violentamente. Num grito de pavor e aflição, saiu dali a criança esfomeada, manquitolando, sob efeito da dentada profunda. Voltou à estrada.

IV – A raposa:
Adveio uma ventania de procedência incerta, e um ar gélido pairou sob os campos sem fim. A criança procurou proteger-se, vestindo um casaco de lã das ovelhas que a tia possuíra, e pela qual lhe foi ofertado. Abrigou-se debaixo de um cipreste cujos ramos vibravam fortemente perante a fúria do sopro da natureza, mas, no entanto, resistindo bravamente. Eis que, como uma cor nova, branca e avermelhada, a brotar da paisagem agora escura, surge uma raposa de uma colina próxima.
_O que faz aqui, nestas terras inóspitas, um filhote humano indefeso? Pela feição que me mostra, está a passar fome, sim? Não sabia que os ciprestes destas redondezas põem frutos saborosos nesta época da vida? E aí está um, com o caule a roçar-lhe as costas. Eu já me empanturrei de tanto engolir as frutinhas de outro cipreste que se encontra atrás daquela colina. Então, faça o seguinte: suba na árvore e comece a colher os frutos, que só dão nos galhos mais altos, enquanto eu utilizo o seu casaco como uma cesta para apará-los. Após, dividiremos o lucro!
E pôs-se a criança a subir pelo cipreste, chegando ao galho mais alto e sem encontrar os benditos frutos. Desceu a fim de esclarecer a dúvida com a raposa, contudo esta não mais se achava ali. Surrupiou-lhe o casaco e foi-se embora, trotando doravante de maneira mais confortável e aquecida.
A criança voltou à estrada.

V- “Adagio Sostenuto”:
E já que o ar tornou-se pesado demasiadamente, as notas da antiga música a balançar o berço sob cujos cobertores dormitava de maneira tranqüila o belo ser, pequenino, frágil, metamorfosearam-se em um retumbar infernal, num som estridente e descompassado, vivo no interior da criança. No lugar de harpas emitindo o tom angelical, ouvia-se agora o vago ruído de bumbos e cornetas desalinhadas, provocando ferimentos a quem os escutava. A única coisa que, naquele momento, aquecia-lhe o corpinho estagnado era o sangue brotando da carne lacerada, o qual estava a regar aquela relva espessa, sob um solo úmido e pegajoso. Qual o pecado cometido pela inocência cândida? Onde estariam os corcéis encarregados de transportar as presenças necessárias das atitudes introspectivas, dos carinhos enlevados de todos os seres inerentes à vida? Que se sabe, pois, do paradeiro dos deslumbramentos essenciais os quais nos cortam desde o momento em que passamos a existir? Eles não nos seguem durante toda a nossa “via vitae”, abandonam-nos na metade, ou mesmo no início da jornada?
Sentou-se resfolegante e permaneceu inerte, olhando as primeiras gotas de um serenar melancólico que lhe escorria pela face. À frente, a estrada, perdida no horizonte, cobria-se de uma paisagem verde-escura sem fim. Pensou no semblante maltratado da tia que lhe deixara, em sua estrutura física debilitada, possuidora de uma esperança irônica, profunda, em voltar a existir. Deitou-se a criança num ultimo esforço, não sentia mais os ossos, o corpo não respondia mais aos chamados da mente, o coração apertou-se num frêmito convulsivo, o frio ia-lhe desbravando os espaços vitais, com intuito à sua conquista. Negar-lhe-ia a existência a sua continuidade em sentir a natureza dos sentidos cálidos, ou quereriam os pássaros negros tragar-lhe até o último suspiro da dádiva mal-cuidada da vida? Ardeu-lhe a carne, um abscesso formara-se, criando um sulco expandido e vibrante, e a calmaria dos dias intermináveis de existência tênue e agradável parecia, em diante, insofismavelmente golpeada pela tortura vã das vivências subjetivas. Os olhos cerraram-se.

VI- Voz do Ser Supremo:
Destacou-se, então, a voz do Ser Supremo, cujo assobio harmonioso invadiu-lhe a alma, penetrando o corpo convalescido:
_Estás neste lugar que mais lembra um covil de demônios assassinos? E como reages à indiferença dos mais diversos seres em referência ao seu estado de espírito? Vêm eles ao teu socorro imediato? Ou perfuram-te a mente e o coração com os perdões jamais existidos? Venho-te, assim sendo, expor o sentimento do mundo, o ágape encolerizado das matanças da vasta comiseração que há de ser encontrada em cada ser habitante deste plano paradoxal. Vieste do desconhecido? Tardas a embasar a tua jornada imperfeita? Com quais argumentos descabidos prossegues a tua marcha cansativa? O Universo inteiro brilha, apesar do vácuo ofuscante presente entre os olhos que não querem enxergar. As lástimas choradas pelos pecadores e covardes não haveriam de consolar uma réplica nobre e pura de ser humano, pois que este ainda busca um caminho perfeito para a sua existência, em um estado ileso das infecções surgidas pelos séculos vividos e vivenciados. E o meu propósito pela manutenção deste arcabouço esperançoso é exatamente o liame criado, desde os primórdios, entre Mim e as almas cuja candura reflete dois planos não afastados, mas superpostos, o Meu e o teu, o Meu e o de qualquer ser que queira embasar-se das leis naturais da mente, da juventude dos sentidos sãos da fina flor brotada, da supressão dos termos pecaminosos e impuros dos pensamentos aviltantes. A conveniência do futuro das ações as quais pretendeis efetivar depende dos caminhos traçados, do amor sentido e puro, mas passado por vós, de alma em alma, de sorriso em sorriso, tal como passam os intermináveis cometas, deixando um rastro de sabedoria e complacência. Anda! Não há de esmorecer em pensamentos débeis e desistir do percalço imaginado! Buscas a essência sem a devida experiência, esta estanque em todos os seres desde o instante de seu nascimento? Oferta-me a reciprocidade! Dá-me a vida!Os olhos foram abertos. A criança mirou a palma das mãos e as viu adultas. O sofrimento dos caminhos trilhados proporcionou o fechamento de muitas cicatrizes abertas e de confuso surgimento. Quais, pois, os seres que haverão de embargar a marcha dos pés esfolados, porém fortes e eretos? A voz do Ser Supremo mostrou-lhe a sapiência dos tempos idos e vindouros, e de certa forma, a lição de que o caminhar não poderia ser suprimido, pelo bem do elo universal travado entre o homem e o desconhecido, mas presente. Pôs-se de pé, andando trôpega, porém avançando a passos lentos. E uma brisa confortante soprou-lhe o corpo mais aquecido e animado, seguindo-lhe até o horizonte sem fim. Até onde ele acabar.

Lembranças de um Tio (heil, junker!)


E então, como se o tempo passasse tão sem medidas, tão velozmente para alguns, tal como um leviatã engolindo tudo o que está em sua frente, sem “eira nem beira”, como cá dizem! A solicitude com que o tempo invade as concepções não deixa nada temerário, ou ao menos não haveria de deixar, certo? Afinal, deixe-se presenciar as insinuações, os fatos, ou os prodígios do presente, mas sem se preocupar com o que se deixa de fazer. Determinadas pessoas pensam dessa forma. A razão é muito ampla! A certeza, sim, é incerta.
O tempo passado acarreta lembranças. Lembro-me bem das peripécias do meu tio Renato, lá para as bandas do interior, sertão brabo. Mas o local de sua toca possuía até um verdejar sem igual lá praqueles lados da Bahia. E era lá em sua propriedade que nós ouvíamos muitas histórias. Algumas sobre o cotidiano mesmo, outras mais hilárias. Montava-se a cavalo, pescava-se, corria-se e, após, fazia-se o jantar. O quê? Eu não me lembro bem... Sei que a base era o milho... Ou as aves caçadas, talvez? Não sei, apenas sei que o céu lá é mais brilhante. Eu vi as constelações do sul de forma perfeita. Órion... Canopus lá brilha intensamente. Meteoros lá passavam também. Um rastro intrínseco.
Num dia lá, um dos rapazes que moravam lá na propriedade desse meu tio estava de bobeira, a um canto, enquanto conversávamos na varanda. Meu tio falou:
_E esse traste aqui, quando na sua primeira vez? Pegou um lençol pra sufocar os gemidos da garota, durante o ato. Mas ele, na hora, caiu, e a casa se assombrou com a gritaria que vinha de um dos quartos. O povo todo saiu e ficou se perguntando o que diabos seria aquilo. Cinco pessoas com o ouvido à porta. Enquanto isso, ao lado de dentro, o rapaz começou a ejacular, e como nunca havia visto aquilo, gritou: “Socorro, papai, que estou morrendo! Acode aqui!”. E o pai invadiu o quarto com duas facas na mão... o resto ele não completou direito, pois estava gargalhando. Já não dá pra entender quando meu tio fala normal, imagina gargalhando.
Pior mesmo foi quando fui tirar a carteira de reservista do exército. Fui tirar nessa cidade, pois os “procedimentos” são menos céleres (dá pra entender, não é?). Esse meu tio me pegou na casa que eu ficava lá, na da irmã de minha mãe. Fui com ele até algo parecido com o SAC da Bahia, onde se tiram RG, CPF, e outras porcarias de papel e tudo. Chegamos, e logo começou com a recepcionista sendo um canhão. Ela enfiava o dedo no nariz que era uma beleza, quase que o dedo se perdia lá dentro.
_Trouxe esse rapaz aqui pra tirar a carteira aí de dispensa. – disse meu tio, ostentando o ar jovial de sempre.
_É mesmo? – disse a mulher.
_É sim... Ele veio trabalhar aqui na cidade, dá pra você fazer os procedimentos aí? Estamos com pressa. Precisamos passar na ADAB ainda, pra assinar lá o que falta (para quem não sabe, ADAB é um órgão ligado a atividades agrícolas).
Logo, saquei qual era a de meu tio. Ora, eu trabalhando lá, seria bem mais fácil de sair a papelada.
_Qual é o nome do rapaz?
Meu tio disse: “Eduardo de Guimarães”. Ao mesmo tempo, eu disse: “Eduardo Guimarães”. A mulher olhou meio desconfiada. Meu tio se desculpou... “é sem o ‘de’, eu me esqueci, sabe como é essa coisa de família, não é?”. Ela chegou a pigarrear em tom ameaçador.
_Vai trabalhar na ADAB é? Meu sobrinho trabalha lá. Em qual setor você vai trabalhar?
Eu lá sabia quais eram os setores da ADAB... sei que era um órgão ligado a atividades agrícolas... acabei utilizando a lógica mesmo.
_Vou trabalhar no setor agrícola. – eu disse. (nada mais lógico, certo?). Mas ao mesmo tempo, meu tio dizia: _No setor de vacinação.
Ora, eu não podia, frente a uma situação daquelas, mostrar-me preocupado, ou temeroso, o que quer que fosse e que me dedurasse. Meu tio emendou:
_É, porque os setores são os de “porte da Bahia pro Pernambuco, pra vacinar vacas e descaroçar a sementeira” – foi algo mais ou menos assim, tão esdrúxulo quanto... eu apenas me continha, querendo rir e com medo ao mesmo tempo, frente àquela mentira, e somente ficava concordando: “É, é, é isso mesmo, com certeza...”.
Pra minha sorte, a mulher ficou um tempo nos fitando e, ao fim, soltou um: “ah”.
Mandou-nos esperar o oficial que fazia o juramento da bandeira lá. O cara chegou depois de meia hora. Eu só queria sair de lá, acabar logo aquela angústia. Imagina a gente ser pego mentindo pro Estado? Coisas desse tipo vinham em minha mente. O oficial chegou limpando as botas. Acho que morava na roça, e ia pra lá a pé mesmo. A mulher virou pra ele:
_Olha aí, Fulano, tem gente hoje aí pra jurar a bandeira.
O cara olhou pra mim de cima a baixo. Abriu uma pequena cômoda com portas de vidro e retirou a bandeira da República Federativa do Brasil, já meio desgastada, mais pelo calor que pelo manuseio, tenho a certeza disso. Então ele se virou pra mim, mandou-me juntar os pés, mãos coladas às pernas (sentido!) e coluna a mais ereta possível.
_Tudo o que eu disser você repete, viu? – disse-me em sotaque sertanejo carregadíssimo. Eu só poderia concordar.
_Eu juro... – falou.
_Eu juro... – repeti.
_...pela República que eu naoksfnaasjnkjbsakfs – começou a embolar tudo, com aquele sotaque, eu não entendi mais nada. Apenas tentava repetir de uma forma monossilábica as palavras do oficial, e juntando os sons que ele fazia. Acho que passamos assim uns três minutos. Era juramento que não acabava mais. E eu na luta, tentando repetir os sons. Acabei que nem sei o que jurei à bandeira. Foi algo que lembrava pátria, Brasil, etc. O resto, não me pergunte.
Acabou o juramento, a mulher carimbou. POF! Oh, carimbo mais demorado, quantos sacrifícios... quando íamos saindo, a mulher perguntou:
_O rapaz é daqui?
_É – respondeu meu tio.
_Não – eu respondi.
Mas aí é outra história!

Ode ao Sertanejo


Vim do Sertão, sim, seu moço,
Pra mor deste esculacho de terra de concreto,
Passei por tudo quanto foi diabo,
Fome, lama, poeira, pau-de-arara, eu lhe confesso.

Deixei seis filho cuidando do roçado,
Que é pra quando eu chegar com o dinheiro,
Também quem sabe com os miolo afortunado,
A gente pegar mió no arado!

Deixei lá também a Zefa, mãe dos meus fio,
Esposa varonil, quase mando ela pra puta que pariu,
Porque aqui neste xibiu,
Tem muita puta pra zelar por nosso Brasil!

Mais num fiz isso não, seu moço,
Adultério é pecado, e eu sô católico, sim senhor!
Guardo a fé dos brabo no meu coração,
Com ela eu carrego os tijolo lá da construção!

E quando eu drumo neste muquifo, quase sem cerrar os óio direito,
Eu penso na minha terra, na terra seca que muito longe eu deixei.
Penso na lua viva que só lá é que se pode vê,
Aurora boreal ninhuma nesse mundo há de ela vencê!

Porque lá, apesar da seca, da fome, da miséria,
Tem um ar especial, que só quem foi é quem sabe!
E um povo acolhedor, sábio e valente,
Que há de perdoar os corrupto e também os que se dizem crente!

E Deus sabe quando vô poder voltar,
Lá pro meu Sertão, o inspirador do Luiz Gonzaga,
Das pedra, da cruz e da espada,
E é com muita luta que ainda estouro lá uma boiada!

Valhei-me, Deus, Padim Pade Cícero,
Olhem pra este mísero sertanejo que Vos fala!
Atendam ao pedido intranqüilo, mais inviolado,Façam que eu volte pra minha terra amada!